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Um pequeno depoimento sobre Vito Letizia

Victor Leonardi

O escritor e historiador Victor Leonardi

É muito difícil sintetizar em duas ou três páginas tudo o que eu gostaria de dizer a respeito do pensamento de Vito Letizia, pois os livros que ele publicou são densos, complexos, e estão baseados em um conhecimento amplo e profundo a respeito da história contemporânea e da filosofia política. São textos escritos por um homem que pensava de forma absolutamente livre, ousada e independente, sem dogmatismo algum, o que é sinal característico da obra de grandes pensadores.

Em seus livros, Letizia não fez proselitismo a favor deste ou daquele teórico das lutas sociais, mas não desprezou-os. Concorda com algumas ideias, de cada um deles (refiro-me aos clássicos do marxismo e da Economia Política), mas raramente declara-se a favor da totalidade da obra de alguém. Essa é uma postura intelectual que mostra como ele refletiu seriamente durante muito tempo a respeito dos vários temas que abordou em seus livros, de forma autêntica e original, entre eles a situação atual do capitalismo financeiro, a história das revoluções dos séculos XIX e XX, o Brasil e seus graves problemas sociais e econômicos, a China atual. A originalidade de suas posições políticas, nas duas últimas décadas de sua vida, é tão interessante e singular que essa é a razão pela qual iniciei este meu depoimento dizendo que é difícil sintetizar o que penso a respeito da obra de Vito Letizia.

Encontrei-me pela primeira vez com ele no mês de janeiro de 1974, lá em Buenos Aires, onde ele estava passando alguns meses depois de ter saído da prisão no Rio Grande do Sul. Tinha sido preso pela ditadura militar e passou cerca de três anos na penitenciária de Porto Alegre. Conversamos durante sete dias, lá na Argentina. Foram conversas longas, sobre os mais variados temas, internacionais e brasileiros. Eu tinha ido até Buenos Aires com o único objetivo de encontrar Letizia para apresentar a ele a revista política que eu e outros brasileiros estávamos editando desde 1972, chamada Outubro.

No ano seguinte, em julho de 1975, quando ele já estava morando na França, encontrei-me novamente com ele, em Paris, e durante mais de 30 dias aprofundamos ainda mais tudo aquilo que já tínhamos debatido em Buenos Aires. Isso só confirmou minhas primeiras impressões a respeito dele: era um militante muito sério e responsável, bastante reservado em sua vida pessoal, e um homem muito culto. Falava várias línguas, gostava de música clássica, conhecia detalhes sobre a geografia e a história de países da América Latina, da Ásia e da África, falando com desenvoltura sobre temas que a imprensa nunca aborda. Porém Letizia não tinha o perfil de um acadêmico. A seu respeito, vale o que disse Engels, lá em Londres, acerca de Marx (no dia do enterro do velho Karl): “Ele foi, antes de mais nada, um revolucionário.”

Depois que Vito Letizia regressou ao Brasil, por volta de 1976, passamos a nos encontrar pelo menos uma vez por mês. E às vezes diariamente, como aconteceu durante todo o ano de 1979.

A partir daquele ano, só nos encontramos mais uma única vez. Foi em São Paulo, durante um jantar, algum tempo antes de seu falecimento. Contei a ele, resumidamente, um pouco do que eu tinha feito nos anos anteriores – escrevi e publiquei vários livros, dei aula em diferentes universidades, aprofundei minhas interpretações a respeito da história do movimento operário, estudei a fundo a história da Amazônia –, e ele me falou de sua visão de mundo naquela fase de sua vida, a mesma visão de mundo que hoje faz parte dos livros de sua autoria publicados nos últimos anos.

Também relembramos, com saudade, alguns episódios vividos por nós e por nossos companheiros durante a resistência contra o regime militar, nos anos 1970 e 1980, e depois reavaliamos aquela experiência, fazendo algumas observações críticas. Foram comentários tranquilos, serenos, o que nem sempre é fácil fazer quando se trata de rememorar aqueles anos conturbados, de luta contra a ditadura, pois às vezes, entre os que lutavam pela mesma causa, durante aqueles anos de chumbo, surgiam divergências e o sectarismo impregnava o comportamento de alguns companheiros. Descobrimos, assim, que continuávamos de acordo sobre as questões mais importantes. Letizia nunca foi sectário. E nunca cometeu o erro que se encontra no polo oposto ao do sectarismo: o oportunismo.

Sinto-me honrado por ter militado contra a ditadura durante alguns anos ao lado de Vito Letizia. Se ele ainda estivesse vivo, estaríamos agora lutando juntos contra o governo Bolsonaro e contra as ideias fascistas que a extrema-direita espalhou pelo Brasil afora nos últimos anos.


O escritor e historiador Victor Leonardi foi um dos fundadores do jornal O Trabalho e conviveu com Vito Letizia no período de combate à ditadura.

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