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O Vito que trago em mim

Olívia Carolino Pires e Vito Letizia.

Olívia Carolino Pires

O Vito “fez nossa cabeça” e insistiu que a gente não deveria se perder nessa vida. Aliás, essa sabedoria fui entender anos depois: a melhor maneira de desenvolver cumplicidade num grupo é estudar juntos, desenvolver um jeito de pensar, enfrentar as questões. Seja lá onde cada um de nós está hoje, seja lá o que estejamos fazendo da vida, temos algo em comum na maneira em que fomos forjados a pensar e a proceder, à maneira de Letizia.

São dez anos (2012) sem o Vito e vinte (2002) de presença de Vito em nossas vidas. Vou tentar esboçar memórias em 3 blocos: o professor, o Vito, o amigo.

O professor Vito Letizia

O primeiro contato, em meados dos anos 2002, foi com o professor magro, curvado e sisudo que tinha disposição para ensinar Marx a um punhado de estudantes. Eram tempos de intensa atividade no movimento estudantil, na construção da nossa chapa ViraMundo que disputava o Centro Acadêmico da FEA da PUC-SP. Na minha cabeça, estudaríamos Marx porque éramos a esquerda, revolucionários do movimento estudantil.

A primeira lição do professor: estudaremos Marx e ponto. Ele não nos escolheu por sermos estudantes destacados, por participar do Movimento Estudantil ou ser militantes. Não que ele não se interessasse pelas nossas peripécias da política (MST pra cá, MTST pra lá, luta contra a ALCA, as eleições do Centro Acadêmico, eleições presidenciais Lula 2002, etc)… Mas, quando entrávamos naquelas salinhas da PUC para estudar, todo aquele burburinho da vida militante que nos atiçava ficava da porta pra fora. Lá dentro, no estudo conduzido por Vito tudo ganhava outra dimensão, outra temporalidade, ganhava um método.

Aquele senhor teve a paciência de ensinar aqueles jovens a pegar o tempo nas mãos e dedicá-lo à parágrafos… Quantas sessões nós dedicamos à leitura rigorosa de um único parágrafo quando a vida “lá fora” parecia tão urgente. Vito acolheu nosso interesse e nos ensinou a ler Marx, produzindo assim um processo de transformação de cada um de nós e do que iríamos fazer da nossa vida universitária (2002-2005). Anos depois, quando me tornei professora da PUC (2008-2015), impulsionei junto ao professor Áquilas Mendes um grupo de estudos com os estudantes no feitio do grupo do Vito.

No segundo semestre de 2004, tivemos a iniciativa de propor ao Vito que ele oferecesse uma disciplina optativa. Quando ele ofereceu a disciplina “O Dinheiro Mundial e a Mundialização do Capital”, era como se o nosso grupo de estudos saísse da clandestinidade e foi minha possibilidade de ter Vito como professor na universidade.

Aulas minuciosamente preparadas deram origem ao roteiro “Contradições que movem a forma do valor”. O roteiro organizou anos de estudos na nossa cabeça. Acho que organizou na do Vito também. Nos vimos naquele roteiro. Ele tem algo de elaboração a partir do estudo coletivo, sistematizado de forma genial pelo professor. O roteiro deu sustentação aos nossos estudos sobre o que ficou conhecido como a “Crise rastejante”. Até hoje esse roteiro me acompanha nas aulas sobre O Capital. Recentemente participei de um curso sobre O Capital que reuniu militantes de várias partes do mundo e ali estava o meu professor falando pela minha voz em sete idiomas.

O Vito

Aos poucos fomos nos formando e a PUC-SP deixava de ser nosso “território comum”. Eu me formei em 2005 e foi por esse período a mudança do Centro para Santa Cecília, onde Vito se instalou discretamente num dos cômodos do apartamento e deixou os outros dois cômodos para o grupo de estudos, um com escrivaninhas e outro para reuniões. A mudança em meio a tantos jornais e materiais diversos do movimento operário e sindical daria um ensaio à parte.

Passamos a fazer reuniões aos sábados pela manhã, seguidas de almoços demorados. Aqui vale registrar: que Vito intercedeu por mim na sustentação do pedido de berinjelas à milanesa em dobro, afinal elas eram devoradas pela turma da carne vermelha. Assim ele fazia cada um de nós se sentir especial: a Ol tem o direito às berinjelas, o Caio não termina uma música ao violão; Luiz fala com as mãos como bom italiano; Danilo é bom contador de histórias, o GG (quero saber notícias dele, por onde anda o GG?), o Manu, ah! É o Manu!

Aquele entra e sai de jovens no apartamento despertou o interesse da vizinha, e, diante de seu questionamento, a gente não titubeou em afirmar sermos todos filhos do Vito! Foram tempos em que pudemos conviver mais com Vito e fomos conquistando sorrisos do professor sisudo a ponto de ele ir na festa da Ulisses, a república (moradia) dos irmãos Nakamura (Danilo e Manu) na época.

Por essa época passamos a nos identificar como Sociedade Marxista Buarquista, porque nossos encontros eram regados de críticas à economia política e violão. A participação no grupo oscilava por conta dos compromissos da vida. Vito jamais desistiu de ninguém.

Lembro-me que em 2008 dedicamos alguns meses ao Compreender Marx, de Denis Collin. Depois que entramos no Albert Soboul , engrenamos na travessia Revolução Francesa, e com E. H. Carr, Revolução Russa (que viriam a ser, anos depois, a base do roteiro de entrevistas que deram origem aos livros publicados pela Editora Alameda e por Cemap-Interludium). Desses anos devo ter por volta de uma dúzia de cadernos em brochura com tudo anotado! Fomos promovidos a ler capítulos inteiros e tínhamos uma dinâmica rotativa de exposições.

Passamos a fazer mais perguntas sobre a vida dele. Uma coisa ou outra ele contava, acho que as informações mais relevantes, e foi aí que passamos a saber da Cida , sua companheira que vive em Gramado, e descobrimos o aniversário dele, em 18 dezembro de 1937.

Quando contei pro Vito que eu estava namorando um argentino ele deixou claro que poderíamos tolerar, mas a regra era: ele vem! você não vai!

Vito não contava muita coisa da militância. Lembro de uma ocasião que , estudando a Revolução Francesa, ele deu um exemplo de um livro de literatura que contava sobre uma situação específica de uma família camponesa que… Alguém de nós exclamou, provavelmente eu: “Pô, Vito, quando você achou tempo para ler isso?!” “Na cadeia lê-se o que se pode”, ou se “lê-se de tudo”, algo assim.” Acho que foi assim que eu soube que ele tinha sido preso.

A primeira vez que me lembro de conversar longamente com Vito sobre militância foi no Hotel Ipanema, na Maria Antonia. Fui buscar ele e Cida de carro, eu tinha chegado cedo e eles me convidaram para um café. Eu estava no dilema entre a vida acadêmica e a vida militante e comecei a chorar minhas pitangas. Foi nesse dia que Vito me contou longamente de quando ele voltou da França e trabalhou nos correios, até ser achado pela Rosa Marques, que o levou para a PUC.

Essa conversa me marcou muito porque ele dividiu comigo um trecho da vida dele, de sair da clandestinidade e retomar a vida no Brasil, para me mostrar uma dimensão da vida militante que quase ninguém revela. O contato que, via de regra, tenho com companheiros/as que lutaram na ditadura são relatos que carregam uma boa dose de encantamento e, por que não dizer, saudosismo da experiência militante. Ali eu conheci um subversivo de modéstia verdadeira que encontrou um jeitinho de me dizer que era importante organizar a vida sem arredar o pé da luta.

O outro contato que tive com a história de militância de Vito foi quando, falando dele com o José Arbex , ele exclamou: “Mas o Vito é o Gilberto!”

Em 2008 a gente se reuniu, eu, o Arbex, o Rafa Nakamura e a Marcela numa sala da Faculdade de Jornalismo da PUC e conversamos sobre Hugo Chávez na Venezuela, sobre PT, CUT e MST no Brasil, sobre a crise e sobre ser anticapitalista. E foi assim que a revista Caros Amigos publicou “A Crise vai trazer problemas muito graves, estamos no comecinho ainda”, em maio de 2008.

Das entrevistas na Caros Amigos, outra foi em dezembro de 2010, “Vito Letizia propõe uma volta a Marx”.

E a última, em dezembro de 2011, “O Brasil vai bem enquanto a China crescer”, essa com casa cheia: Barbara, Caio, Danilo, Débora, Manu, Gabriela, Jorge, Zé, Lúcia, Nivaldo, Ol e Otavio. Da primeira entrevista à última, o processo que deflagrou que esse povo todo se reunisse em volta do Vito foi a doença.

O amigo

Vito morando em Gramado, seguimos nos reunindo virtualmente pelo skype para fazer o grupo de estudos. A mudança do Vito para o Sul dava um ensaio à parte. Eu ganhei um motivo a mais para gostar dos compromissos em Porto Alegre, pois podia visitar o Vito.

Em dezembro de 2009 eu recebi uma tarefa no Iterra (Instituto Josué de Castro) para assessorar um curso sobre Marx, não pude ir e indiquei o Vito. Assim ele foi parar no meio dos Sem Terra em Veranópolis.

Lá pra abril do ano seguinte (2010), outro convite do Iterra, lembro que era um curso sobre “filosofia da práxis”, eu teria que me preparar para o tema, mas pedi para os compas emitirem a passagem para uns dias antes, porque assim passaria uns dias em Porto Alegre mateando, comendo pão de passas e canela da wickbold (já que não era época de panetone) com muita nata Piá e pegando umas dicas com Vito de como preparar essa aula. E de quebra poderíamos caminhar por POA e comer no restaurante do shopping.

Nessa ida ao Rio Grande nenhum desses rituais pôde acontecer, pois encontrei meu amigo com dor. Vito caminhava sem parar de um lado para o outro da sala do apartamento e me contava da caminhada na solitária durante o tempo em que esteve preso. Contactei Cida, que revelou que ele convivia com a dor, não queria que ninguém soubesse, não queria saber de hospital, estava sem plano. Filha rebelde, acionei o sobrinho Renato, as irmãs Fifi e Rita, os amigos-companheiros médicos e tocamos para o hospital, onde tivemos o diagnóstico do câncer de pâncreas (o mesmo diagnóstico que levou meu vô Carlito em 2007). Cheguei a passar uma noite no hospital com ele depois que voltei da atividade. Medicado, ele conseguia conversar. Lembro de ele ser muito doce e me agradecer.

A notícia da doença de Vito mobilizou a solidariedade da turma e, por meio do Arbex, a notícia sensibilizou os companheiros da ex-Libelu que conheceram o Gilberto.

O Interludim – reflexões anticapitalistas e a série de entrevistas reuniu clássicos, nós, e os modernos, os ex-Libelus, numa mesma empreitada sintetizada pelo Vito nas seguintes palavras:

Somos um grupo militante (ou de militantes) que se dispõe a atuar nos movimentos sociais que resistem ou se mobilizam contra o capital e o Estado burguês, que destroem a natureza e degradam as condições de vida do Homem. Apoiamos incondicionalmente a luta do povo palestino por uma nação livre e soberana. Não temos a pretensão de retomar experiências fracassadas de construção de um Estado socialista. Estamos lançando o sítio eletrônico para oferecer nossa contribuição sobre as ideias que nos unem.”

Mais ou menos conscientemente, nesse período nós, os clássicos, nos perguntávamos por que um professor como o Vito se dedicou tanto a nós? Sem pedir nada em troca, sem expectativas, apenas na esperança de que a gente não se separasse e se mantivesse ao lado da classe trabalhadora. E isso a gente fez e faz, um tempo chamando de ViraMundo, SMB, Interludium, seita decente ou simplesmente “turma”. Mas a gente intuía que todo aquele conhecimento não podia ficar só com a gente e a possibilidade de divulgar o pensamento do Vito era mais do que sedutora, era um compromisso.

Vito enfrentou corajosamente a quimioterapia para nos regalar vida entre uma janela e outra. Talvez tenha havido um desencontro entre as questões geracionais dos nossos companheiros da Libelu e nós que só queríamos estar com o Vito, organizar em roteiros percursos que outrora fizemos. Acessar menos conhecimento e mais a vida que a dor permite viver. E isso foram as viagens a Gramado entre lareira, taoismo, mapa astral, lençol elétrico, madeleine , o melhor queijo Brie de nossas vidas, teve vinho e como teve!

Tenho um papel com um quadro impresso: “semana Vito e Cida em São Paulo”. Restaurantes, endereços, cronograma, entrevista, lançamento do site de Interludium, tudo sob controle. Olho as fotos daquela semana… e nada estava sob controle! São fotos descontraídas, Vito falava com plena liberdade. Foi a ocasião da minha moqueca de caju com dendê que arrancou o comentário de Vito: “Agora aterrissei no Brasil.” Naquela semana, anunciei que estava grávida. À medida que a gestação avançava, não conseguia mais acompanhar as viagens a Gramado. Luísa nasceu em 22 de junho. Tirei foto e escrevi uma carta à mão que começava dizendo “Vovô Vito”. Lúcia Pinheiro gentilmente levou a carta. Vito chegou a ver a foto, elas leram a carta para ele, que dormiu e não acordou no 8 de julho.

Com Vito se podia conversar absolutamente sobre tudo… Até hoje comento com os Nakamuras: o que Vito diria disso? E a voz dele imediatamente começa a ecoar na nossa cabeça… “Escuta,…”


A economista e doutora em Ciências Sociais Olívia Carolino Pires é militante do Movimento Brasil Popular e faz parte da coordenação do Projeto Brasil Popular. Pesquisadora do Instituto Tricontinental, foi professora do Departamento de Ciências Econômicas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) entre 2008 e 2017 e integrou a equipe de educadores do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae de 2015 a 2018. É professora da Escola Nacional Florestan Fernandes e da Escola Nacional Paulo Freire. A imagem deste post faz parte do arquivo pessoal de Olívia.

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