Menu fechado

Estamos apenas no início de uma grande crise mundial

Nesta entrevista, Vito Letizia põe em foco a América Latina, principalmente. Com sua habitual lucidez, Letizia analisa o advento do “chavismo” (incluindo a proposta que se tornou conhecida como “socialismo do século 21”), e as perspectivas postas para as lutas travadas por trabalhadores urbanos e rurais, combinadas, na primeira década do século, com a emergência significativa das mobilizações dos povos originários. O Brasil, obviamente, merece um destaque especial, em particular no que se refere ao início de um balanço necessário sobre a trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de importantes movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

A crise nos Estados Unidos está apenas em seu começo, e representa o fim do ciclo de expansão capitalista aberto após a 2ª Guerra Mundial, afirma Vito Letizia, professor de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Militante revolucionário há quatro décadas, Letizia qualifica-se, hoje, como “anticapitalista”, por acreditar que o termo “socialista” foi esvaziado, pela história, de seu conteúdo transformador original. Veja suas reflexões, algumas bastante provocadoras:

José Arbex Jr. – Para começar, proponho uma questão que divide a esquerda: a caracterização do governo Hugo Chávez na Venezuela e o que se entende por socialismo no século 21.

Vito Letizia – O problema é a definição do socialismo. É difícil dizer o que se entende por socialismo hoje. Existe uma referência firme, a experiência da União Soviética, que fracassou. Hoje, os ex-stalinistas estão francamente do lado do capitalismo, como o Roberto Freire, no Brasil. E os que continuam a falar em socialismo, apresentam senões e criam as suas próprias versões, que são muitas. A referência ao paradigma, a rigor, desapareceu. O movimento pelo socialismo virou algo fragmentado. No caso da Venezuela, a referência é o bolivarismo. Mas a experiência de Simón Bolívar é algo que não passava pela cabeça das pessoas que participaram do movimento ligado à Revolução de 1917. É uma coisa tão diferente, digamos, que até se pode dizer que é socialismo, mas num novo espírito, num novo sentido totalmente vago do termo. A esta altura, cada um pode inventar um herói, e tomar esse herói como o fundador das ideias que ele está seguindo. Pode ser Bolívar, pode ser qualquer um. Tudo é possível, mas nada é verdadeiro.

Parte da esquerda acha que Chávez propõe uma utopia reacionária, a ideia de criar um “capitalismo de face humana”.

Chegada de Hugo Chávez a Porto Alegre, em janeiro de 2005

Eu não chegaria a tanto. O socialismo de Chávez é muito vago, mas isso faz parte da época, sem parâmetros. O movimento dele é limitado, mas é difícil fazer julgamento em torno de pessoas e grupos políticos sem fazer referência a um fundo social onde eles aparecem. No caso da Venezuela, existe um movimento que eu até chamaria de neo-independentista, porque a Venezuela teve uma trajetória muito fortemente ligada aos Estados Unidos. A classe média venezuelana é muito americanizada, talvez a mais americanizada das Américas. Chávez representa uma reação a essa quase assimilação, a essa quase redução da nação venezuelana a uma situação de 51º Estado dos Estados Unidos. Não se pode dizer que isso seja reacionário.

Saindo da Venezuela, a que você atribui o novo protagonismo das populações originárias?

É necessário entender isso no seu contexto, particularmente na Bolívia, no Peru e no Equador. Na Bolívia, de modo mais forte, ocorre um movimento profundo do povo de origem indígena. Era uma parte da população condenada a um nível de subumanidade. Um amigo meu que uma vez foi ao Peru, notou que os empregados domésticos não encaram os brancos. É uma população submetida, tratada como casta inferior no tempo da colônia, que, depois, foi demagogicamente promovida à cidadania, mas as relações continuaram sendo as mesmas. E na Bolívia aconteceu um movimento que colocou esse pessoal no primeiro plano do cenário político. Evo Morales não é um representante autêntico desse fenômeno, mas foi aceito como representação momentaneamente viável.

Mas por que agora?

É o momento internacional, de tensão muito forte das relações de exploração e opressão. Antes, houve um período de desenvolvimento econômico, durante os processos de industrialização. Não esqueçamos que na Bolívia houve uma revolução bastante importante, em 1952, liderado pela Central Operária Boliviana. Foi um levante que parecia ser um movimento socialista, a julgar pelas lideranças, ao passo que o povo oprimido da Bolívia, no fundo, queria ascender a um nível social superior. Os trabalhadores mineiros, que desempenharam um papel importante em 1952, não jogam um papel importante agora. A coisa é mais ampla, mais índia mesmo. Parecia ter um caráter mais operário, em 1952, mas o fundo sempre foi esse, só que naquela época existia uma esperança de fazer uma revolução socialista, de promover uma industrialização que iria desenvolver os povos da América Latina. Os movimentos operários daquela época despertavam grandes esperanças, atraíam a classe média, em suma, tocavam nos brios da nação. Hoje não é mais assim. Busca-se, no fundo, em última análise, apenas o desenvolvimento humano de uma parte da população que estava abaixo do nível da cidadania. As tensões criadas pelo aprofundamento da exploração fizeram surgir à tona essas coisas.

Como explicar o fato de que no Brasil, onde as forças produtivas atingiram um nível de crescimento relativamente grande e a vanguarda da classe operária foi bem organizada pelo PT e pela CUT, vivemos num marasmo, ao passo que na América Latina populações economicamente arcaicas, como os povos originários, tomam a dianteira na luta?

O movimento operário, quando se desenvolve em profundidade, representa um movimento social anticapitalista, que transcende os limites da classe. Em todos os momentos em que houve uma revolução socialista, grandes segmentos da população eram simpáticos ao movimento operário e buscavam junto com ele uma alternativa ao capitalismo. Mas o PT nunca saiu dos quadros do capitalismo. Ele defendia um socialismo que aparecia como sendo o possível, o Estado de bem-estar social e, até certo ponto, o socialismo real da Europa do Leste. O PT nunca conseguiu definir com clareza sua ideologia. O movimento socialista brasileiro, e, portanto, o movimento operário organizado, limitava-se aos parâmetros da época. E o que sempre realmente conta é a massa não teórica, a massa não politizada, isso é que vai ser o ponto decisivo do futuro de qualquer movimento. Se um movimento político consegue tocar a população, a sociedade em profundidade, ele tem futuro. Caso contrário, não tem futuro. Considerando a população em sua profundidade, qual era o paradigma possível? A União Soviética, que era uma coisa assustadora, pela fama das brutalidades de Josef Stalin.

Mas, no final dos anos 1970, o ABC paulista foi palco de manifestações operárias grandiosas. Porque esse movimento ficou contido nos marcos do regime burguês? Foi a direção do PT?

Não, não acho que foi a direção do PT. Eu não sou admirador da direção do PT, condeno as opções que eles fizeram, mas eu acho que havia esses limites. É o que eu já falei. O futuro de um movimento político depende do impulso social que ele pode receber. Se ele consegue tocar a profundidade da sociedade, ele tem futuro. E naquele momento, o modelo que a sociedade tinha era um modelo que não saía dos marcos do capitalismo. Então, o PT, se quisesse avançar, teria que fazer uma longa trajetória de educação política da população, ou seja, não teria que ter pressa de chegar ao poder. Teria que cair fora do eleitoralismo, que foi o grande pecado, que fez o PT naufragar. Mas isso implicaria criar um movimento, uma corrente de opinião anticapitalista, expor as mazelas das formas de apropriação do solo no Brasil, urbano e rural. Criar um movimento que tinha futuro, poderia crescer, e poderia, com o tempo, chegar a ameaçar. Como o PT não fez isso, deu no que deu.

Você acha que hoje, no Brasil, o MST é esse movimento que chega ao fundo da sociedade?

João Pedro Stédile, líder do

Não, o MST é um movimento parcial, ele diz respeito a um problema da sociedade, que é o problema da apropriação da terra. Ele não expressa as aspirações gerais. Se o MST pensasse como movimento geral, ele questionaria o modo de apropriação capitalista do solo no Brasil, que é particularmente abusivo. O Stedile, volta e meia, levanta coisas que vão nesse sentido, mas não é o ponto mais marcante da imagem que o MST dá e das reivindicações que ele faz de maneira mais evidente.

Você acha que o MST deve adotar uma plataforma política mais abrangente, transformar-se em partido?

Para se transformar em partido, ele teria que se unir aos movimentos de outros setores, que estão organizados de outra maneira e que, eventualmente, são contra ter uma militância abertamente anticapitalista. Para que outros movimentos, como o operário, se organizem de uma maneira semelhante ao MST, eles teriam que colocar em questão o capitalismo de uma forma muito mais direta e clara. Para uma parte da população que reivindica terra, é possível fazê-lo sem se chocar diretamente com a totalidade do quadro do sistema capitalista. Por que? Porque tem muitos países capitalistas onde a distribuição de terra é muito equitativa, como em Taiwan e no Japão depois da 2ª Guerra. O MST pode promover grandes lutas sem questionar o modo de produção em seu conjunto. Agora, para um trabalhador urbano é muito difícil querer lutar contra o sistema e não pôr em questão o modo como se dá o assalariamento, a sociedade salarial tal como ela está hoje constituída. É preciso que haja um movimento social anticapitalista entre os trabalhadores que seja similar ao movimento social que existe entre parte da população que está desprovida de terra. Aí sim, haveria uma união forte que poderia comover a sociedade.

Nos anos 1980, a CUT se formou num processo de ruptura com o assistencialismo varguista, postulando a possibilidade de um sindicalismo de classe. Nada disso aconteceu. Aí a direção tem papel central, ou não?

Tem. Aí sim, a direção tem um papel central porque a partir de um certo momento, ela resolveu ser coerente com a trajetória possível, de se desenvolver no quadro do capitalismo, de subordinação do sindicato ao Estado burguês. A direção não era obrigada a se enquadrar no sistema. Isso tudo diz respeito à equipe dirigente, à equipe central de sindicalistas que dirigiu o PT desde o começo e que conduziu o PT à presidência da República. Isso é responsabilidade particular dessa equipe.

O que você acha que vai acontecer com o Brasil, você está pessimista?

No curto prazo, sim, porque o MST está confinado no seu terreno e o movimento operário hesita muito em enfrentar o sistema. Mas, no longo prazo, acho que tem muita coisa para acontecer, porque o capitalismo está numa tensão muito forte, a economia está sofrendo um abalo com a crise que está começando nos Estados Unidos e se estendendo para outras partes do mundo.

Você acha que nós estamos no limite de um ciclo, no fim do neoliberalismo?

O capitalismo pós Segunda Guerra chegou ao limite de expansão sem se defrontar com uma grande crise. A expansão que se deu no imediato pós-guerra foi possibilitada pelo acesso de grandes contingentes da população ao mercado de consumo, em todos os países do mundo, inclusive na periferia do sistema. No Brasil, por exemplo, houve a industrialização, que não diminuiu os contrastes sociais, porém uma parte da população ascendeu a um nível de consumo superior. Houve um aumento do mercado interno de quase todos os países. Hoje, o modo de expansão se dá através da compressão do custo salarial, em primeiro lugar. E do custo dos transportes internacionais. Então o modo de desenvolvimento generalizado hoje é o de todos os países se transformarem em plataformas de exportação. É como o Brasil está fazendo. Esse é o modo, acompanhado de compressão salarial, para diminuir os custos comparativos.

Antes, a gente podia dizer que estava num processo de substituição de importações, hoje estamos num processo de substituição de consumo: importamos da China qualquer bugiganga que antes se fabricava no Brasil, simplesmente porque lá está mais barato. O Brasil procura exportar qualquer coisa que alguém esteja disposto a importar lá fora, mesmo que isso signifique desindustrialização, destruição da Amazônia. E é esse modo que está em crise. Porque esse modo tem uma pedra de cúpula onde se concentram todas as energias, o grande mercado de consumo estadunidense, que tem um déficit monumental e é o grande absorvedor de excessos de produção dos países transformados em plataformas de exportação. Ora, esse grande mercado de consumo encontra dificuldades cada vez maiores de prosseguir assim. A solução final da crise estadunidense seria reverter isso. Mas fazê-lo significaria uma mudança tão drástica no equilíbrio do sistema que é difícil prever no que isso resultaria.

Os neoconservadores propõem fazer isso por meios militares.

Quando as necessidades são muito violentas por parte do sistema, a truculência torna-se inevitável, e os mais decididos já encaram isso. Mas a crise estadunidense não pode continuar indefinidamente assim. Alan Greenspan (ex-presidente do Fed, Banco Central estadunidense) admite que “acabou o tempo em que se pode continuar crescendo sem inflação”. Antes era possível crescer e manter a estabilidade monetária. Agora será necessário sacrificar a estabilidade, o que significa comprometer todo o resto, pois implica sacrifícios que vão ter que ser partilhados por todo mundo. Aliás, uma expressão nova apareceu entre os economistas estadunidenses: a necessidade de socializar os prejuízos. A crise acontecerá em escala mundial, vai trazer problemas muito graves. É difícil saber qual a forma em que isso vai se desenvolver porque estamos bem no comecinho ainda.

Barack Obama na campanha eleitoral de 2008

O que representa, nesse quadro, a candidatura de Barack Obama?

Não vejo nada demais no Barack. Aliás, fico até um pouco desconfiado. Não tenho acompanhado muito a campanha, mas no atacado das notícias que eu vejo, me chama a atenção as solidariedades de alto nível que ele tem obtido dentro do establishment estadunidense. Nunca é gratuito esse tipo de apoio. Não vou questionar as boas intenções que ele possa ter, mas ele está dentro de uma trajetória de um partido que é uma continuidade dentro da trajetória do império estadunidense.

Porque você se define anticapitalista e não socialista?

Por causa daquilo que já expliquei, a falta de um paradigma. Para o povo não politizado, socialismo, infelizmente, é um socialismo do Estado de bem-estar europeu ou da União Soviética. Então, se eu me digo socialista, eu vou me enquadrar nesse limite, que não é claramente anticapitalista.

Mas isso cria um problema. Quando você diz “eu sou anticapitalista”, você nega algo, sem afirmar nada de positivo.

Acontece que, hoje, o negativo prevalece como um movimento positivo. Quando existe um movimento da sociedade que questiona o modo de produção, é fácil se referir a esse movimento. Marx se referia ao socialismo, por exemplo. O socialismo era uma força anticapitalista que representava as aspirações de milhões de pessoas.

Mas hoje não está claramente delineado um horizonte fora do capitalismo. Só sobra a definição negativa: rejeitar o capitalismo e propor que se lute contra ele. Observando o movimento real contemporâneo, verificamos que o capitalismo está sendo ameaçado por forças que não são anticapitalistas, nem aproximativamente. Por exemplo, o movimento islâmico, que não tem nada a ver com o socialismo, mas é o que unifica em profundidade a sociedade daqueles lugares. É lamentável. Acho que isso representa o fracasso dos socialistas.


Esta entrevista foi publicada pela revista Caros Amigos em maio de 2008. Posteriormente foi reproduzida no livro A grande crise rastejante (Editora Caros Amigos, 2012).

Veja mais

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *