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Destruição da Amazônia financia o crescimento brasileiro

Vito Letizia na revista "Caros Amigos"

Nesta longa entrevista à revista Caros Amigos, Vito Letizia faz um balanço da crise mundial do capital, e em particular do lugar ocupado pelo Brasil e suas perspectivas.

Como você vê a crise na Europa e a atual conjuntura mundial?

Há uma crise na zona do euro, uma crise de acúmulo de dívidas públicas, que já há algum tempo impede os países da zona do euro de ter um déficit público máximo de 3% do Produto Interno Bruto (PIB). Nem a Alemanha, que é o país mais forte, está cumprindo esse objetivo. Na Grécia, que tem uma economia fraca, o déficit está em 160% e estão batalhando para que não ultrapasse 200%, caso em que superaria o Japão, que não está na zona do euro. Dizem os economistas que o centro da crise é a zona do euro e não os Estados Unidos, que, efetivamente, não estão tendo problemas maiores de inadimplência nem de falta do necessário fluxo de investimentos, investimentos em bônus do Tesouro americano, que mantém a moeda norte-americana, o dólar, como uma moeda forte.

Isso é o que se sabe. Então, por que aconteceram nos Estados Unidos as primeiras manifestações contra as finanças? Por causa das medidas de contenção de despesas em benefícios sociais, que indignaram o povo americano por causa das tremendas vantagens que foram concedidas aos banqueiros. Toda aquela sequência de medidas salvadoras do sistema financeiro privado americano, que resultou finalmente num acordo que dá ao governo o direito de continuar aumentando a dívida pública, porém obriga a cortar despesas em benefícios sociais. Esse acordo, firmado entre o Senado e o presidente Barack Obama, contou com o apoio da ala democrática. Ele estabelece um sistema de austeridade das finanças norte-americanas, mas é uma austeridade para o público e não para os banqueiros. Já havia uma indignação antiga do povo norte-americano com os enormes gastos para salvar o sistema bancário falido. E agora, com essas novas medidas, essa indignação foi se acumulando. E estourou. Então, temos um processo de crise, que eu chamo de crise rastejante porque pode ser contida e empurrada para a frente por causa da grande flexibilidade do Banco Central norte-americano em criar moeda. Então, ele cria moeda em uma quantidade gigantesca e tem o consenso dos bancos centrais do mundo inteiro para sustentar essa moeda simplesmente impressa.

Protesto do Occupy Wall Street em setembro de 2011. David Shankbone
Protesto do Occupy Wall Street em Nova York. Foto de David Shankbone.

Apesar da crise que começou em 2007, no Brasil, a sensação é de crescimento, com aumento do consumo, renda, crédito e emprego. Qual a sua opinião sobre a situação mundial e por quanto tempo dá para ser otimista com a situação brasileira?

Havia uma expectativa, uma apreensão, sobre a economia chinesa, mas na semana passada [meio de outubro de 2011 – NR] surgiram notícias de que ela continua robusta e que o PIB chinês deve crescer 9% em 2011. Então os investidores ficaram sossegados quanto à China. O Brasil está muito atado a esse ciclo de negócios que está ancorado no crescimento chinês. Então, não há nenhuma previsão negativa grave para a economia brasileira enquanto a China estiver com um crescimento que eles chamam de robusto, que é de por volta de 10% ao ano, um pouco acima ou um pouco abaixo. Estão prevendo uma situação difícil para o Brasil no ano de 2012. A Dilma até alertou o Guido Mantega E a Dilma tentando apaziguar as pessoas mais apreensivas dizendo que não vai ser uma coisa muito grave, que o Brasil vai se sair mais ou menos bem. Na verdade, ela está contando com a continuidade do crescimento robusto chinês.

E qual a razão de toda essa preocupação com o ano de 2012? Por causa da crise na zona do euro. É claro que o Brasil vai sentir em algum grau os efeitos do aprofundamento dessa crise, mas, mesmo assim, não seria um fator catastrófico, a repercussão não seria catastrófica para o Brasil. A não ser que seja uma catástrofe tão violenta que afete outras partes do mundo. Por enquanto, sabe-se que a zona do euro está mal e vai continuar mal. A salvação da Grécia já está descartada, não se sabe como vai resolver. A lista de medidas propõe que se deixe afundar a Grécia e se tente salvar pelo menos Portugal, Espanha, Irlanda e Itália, países que seriam afetados imediatamente pela crise. Então, se não acontecer nada em Portugal e Espanha e a Grécia desabar, ainda será possível salvar a zona do euro, desde que se socorram os bancos que estão muito carregados com títulos da dívida grega. É uma operação financeira de salvação desses bancos.

O Brasil pode sofrer uma repercussão de um aprofundamento dessa crise da Europa, que não tem uma saída semelhante à dos Estados Unidos, porque a Europa não pode imprimir euros livremente como os Estados Unidos imprimem dólares. Acho que vamos sofrer alguma coisa, mas o perigo maior para o Brasil seria o arrefecimento da economia chinesa, que pode acontecer em decorrência da repercussão dessas medidas de austeridade que foram acordadas entre o Senado e o Executivo norte-americanos, porque isso diminui a capacidade de compra dos Estados Unidos da produção chinesa. E a China depende do consumo norte-americano para manter seu ritmo de exportação bom. Quer dizer, para a economia chinesa continuar crescendo é preciso que o ritmo de suas exportações para os Estados Unidos permaneça elevado. Se acontecer uma queda forte do consumo norte-americano de produtos chineses, a China será fortemente atingida.

Você analisou a relação do Brasil com a China, mas no plano interno a economia brasileira está sendo movida pelo endividamento das famílias.

Mas isso não é só no Brasil. Isso é toda a economia internacional. Eu já dizia antes de 2008 que a economia internacional estava sobrevivendo de uma maneira artificial, baseada em um endividamento crescente das famílias. E nos países centrais o endividamento é muito grande. No Brasil, um endividamento tido como moderado, mas de qualquer maneira grande em relação a toda a história antecedente de endividamento das famílias, e que se acentuou com o crédito consignado. Então, o Brasil está incluído nesse sistema artificial de manutenção de funcionamento do pulmão da economia mundial, que é o consumo. É um consumo artificial. Eu dizia naquela época que isso tem limite, que não é possível endividar ad infinitum a economia de todos os países do mundo. Ou eles resolvem criar um mercado consumidor baseado em ganhos reais, ou esse negócio tem prazo. Diminuir o ganho real e aumentar o endividamento, isso tem prazo, não é infinito. Como de fato aconteceu em 2007. Agora estão aumentando o endividamento, que já era grande. O Brasil está passando de moderado para grande.

Charge de Duke sobre a exploração da Amazônia

Mas o Brasil tem um trunfo que nem todos os países têm, que é a destruição de recursos naturais. Destruir a Amazônia é barato e lucrativo e isso mantém uma certa aparência de bom funcionamento da economia, razão pela qual o governo Lula já não conseguiu cooptar para o governo quem tivesse precauções ecológicas sérias, que não era a Marina [a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva], porque a Marina sempre foi muito leniente, ela sabia que dependia da destruição da Amazônia para continuar com a economia funcionando e, depois, botaram um cara que nem sequer preocupações com o assunto tem, mas parece que é do Partido Verde. O Partido Verde é uma piada no Brasil em termos de ecologia, pode ser um grande partido em outras coisas, mas em ecologia não. É o trunfo do Brasil.

Na Europa, os países apresentam quadros heterogêneos com a chegada da crise: a Irlanda e a Islândia, por exemplo. Gostaria que você falasse um pouco dessa heterogeneidade, e em particular sobre a Grécia.

A reação de não aceitar as operações desastrosas das finanças para o público, realmente isso só aconteceu na Islândia, onde o povo exigiu um plebiscito para decidir se iam pagar os credores europeus. Teve um banco que apresentou a Islândia como porto seguro para investidores europeus e da zona da libra, da Inglaterra, que encheram a Islândia de moeda forte. E parecia que tudo ia bem, até que as oscilações da economia europeia fizeram com que eles, os que tinham depósitos nesse banco, tirassem bruscamente o dinheiro. E como todo o sistema financeiro da Islândia estava ancorado nisso, a questão colocada era socorrer esse banco e honrar os compromissos com os credores europeus. Mas aí o povo insurgiu-se e fez um plebiscito que decidiu não pagar os credores europeus. Mas a Islândia é uma exceção. Discutiu o problema claramente com o grande público. Digamos, assim, de forma democrática. Não digo democracia porque o termo é um pouco complicado, mas, digamos, uma coisa que é muito característica de países nórdicos. A Suécia e a Islândia, principalmente os dois, não sei a Finlândia, têm a tradição de o povo não se deixar levar à aceitação de medidas que ele acha lesivas. O povo reage.

Quem estudou um pouco da história da Suécia e da Islândia percebe que o povo não deixa fazer. Não é exatamente a democracia cotidiana, como na democracia grega, mas o povo não considera o Estado como sendo uma coisa sagrada, como se vê no resto do mundo, e não aceita passivamente suas decisões. Se o povo percebe que determinadas medidas não funcionaram, se teve uma medida errada, o povo reage e exige que o problema seja consertado, e os governos têm de dar um jeito. Na Suécia e na Islândia tem funcionado assim, tanto é que até agora não conseguiram golpear o Estado de bem-estar da Suécia. Cortaram alguma coisa, mas está difícil. É uma exceção.

A Grécia, não, estava super feliz por estar na zona do euro. É um país atrasado economicamente, com fonte de divisas provenientes de frete marítimo, que está na mão daqueles proprietários, daquelas famílias que não fabricam navios, apenas compram embarcações usadas e as reformam, o que beneficia muito pouco a Grécia, porque eles recolhem poucos impostos. O dinheiro deles é de bandeiras estrangeiras, vai para bandeiras estrangeiras. Os navios são de bandeiras mercantes, então eles fazem mais ou menos o que querem e pagam o imposto que acham que é justo pagar para o governo grego. Por isso, uma das questões que o Banco Central Europeu levantou para sanear as finanças gregas era acabar com a sonegação. É ridículo, porque aí ficou o povo grego como sendo de grandes sonegadores, os coitados que não podem escapar de pagar impostos. E é esse povo que eles vão arrochar. Na hora de arrochar eles arrocham quem não tem recursos para escapar.

Querem criar imposto sobre piscina. Até começaram a cobrir as piscinas com grama artificial para não verem…

Charge de Carlos Latuff sobre a crise da Grécia, de 2010.

E aí a outra coisa que disseram é que o governo grego é perdulário, gasta muito com dinheiro público. Mas, escuta, qual a vantagem do governo grego de estar na zona do euro? Ter pelo menos uma parte dos benefícios da zona do euro. A Grécia entrou, vamos dizer assim, porque é o país mãe da cultura europeia. A Grécia, a civilização helênica, não entrou daquele jeito rastejante que entraram os países do Leste, que estavam no socialismo real e, de repente, entraram no rastro do mercado comum europeu. Eles entraram de cabeça erguida: nós somos os helenos e vamos trazer a civilização para a Europa. Mas teve todo um discurso promocional que pretendia fazer crer que a Grécia finalmente estava sendo resgatada ao nível de todas as nações civilizadas, que deixava de ser uma colônia turca, um país de quintal da Europa. Então, quando passaram a dizer que o governo grego era perdulário porque queria dar muitos benefícios aos funcionários públicos e aí o governo resolveu cortar os salários e também direitos dos trabalhadores, é evidente que isso é uma coisa que não entra na cabeça dos gregos. É um choque forte em termos de orgulho da nação. É claro que todo mundo que perde fica bravo, mas para os gregos tem outras conotações. Então, a revolta grega tem uma característica muito particular e não pode ser muito partilhada pelos outros países. A reação do povo grego não parou até agora. Continua. E não vai parar. Eu daria até de barato que terminaria esse início de mobilização se, de repente, terminasse o período da austeridade e tocassem a economia para a frente, mas estão falando em largar a Grécia.

Quando falamos da crise rastejante, os principais prejudicados são os assalariados, que sofrem os efeitos do arrocho salarial e da retirada de benefícios. Como poderíamos pensar nas pessoas que estão nos extratos mais baixos da sociedade, como os sans papiers na França, os turcos na Alemanha, esse trabalhador que foi integrado na economia, mas não tem quaisquer direitos?

Os sans papiers, imigrantes que entraram clandestinamente na França,se mobilizam de forma diferente. No passado, não havia muitos sans papiers na França. Mesmo os imigrantes clandestinos conseguiam trabalho e ficavam em situação bem melhor em relação àquela em que viviam em seus países de origem. Com a crise que surgiu a partir dos anos 1980, começaram a aparecer os problemas. Da última vez que fui à França, em 1984, começou a se aguçar essa questão. Com a escalada do desemprego, o problema começou a aparecer de maneira mais forte e, nas últimas décadas, ficou crônico. Então, a solução é pelo menos proteger o emprego dos imigrantes que têm direito de ficar, porque eles moram na França e têm filhos que já nasceram lá. Mas como o desemprego tem aumentado, a primeira medida que o governo toma é mandar embora os sans papiers. Não é uma medida contra os imigrantes em geral, mas contra os que entram clandestinamente.

O desemprego, hoje, atinge principalmente os descendentes de imigrantes, que são aquele pessoal das banlieus, do subúrbio, que protagonizaram as revoltas de alguns anos atrás. Hoje, na França, existe uma política mais forte de evitar clandestinos e, por outro lado, há mobilização para tentar proteger da expulsão violenta os sans papiers que já entraram. Mas é um processo político, vamos dizer assim, que não está integrado no processo geral do movimento operário francês. O movimento operário francês não está fundido com isso. Isso aí é um movimento específico e particular, que tem apoio de uma corrente de opinião francesa, minoritária. Isso implica uma certa fragilidade desse movimento.

Protesto de sans papiers em Paris, em 2016. Petit_louis
Manifestação de “sans papiers” em Paris. Foto de Petit_louis.

O problema dos sans papiers envolve uma questão não diretamente econômica, mas de ordem ideológica e até social, que é a questão da polarização em torna de raça e etnia. E a ascensão da extrema direita, que está querendo expulsar todo mundo de lá.

Mas aí entram outras coisas que não se restringem à extrema direita. A extrema direita europeia era antissemita e agora é pró-semita e antimuçulmana. A direita é antissemita, mas tem um centro que acompanha a extrema direita no combate aos muçulmanos. Então a coisa está muito complicada. A gente também viu e ouviu manifestações antimuçulmanas de representantes da esquerda, como a tal de nova esquerda anticapitalista, que apoiou leis na França como a que proibia um muçulmano de estender o tapete na calçada para fazer a oração no horário. Não sei se passou essa lei, mas foi proposta.

Acho que passou, a do véu passou.

Se passou, não diria nem que a lei é racista, é mais complicado do que isso, porque mostra uma fissura que está sendo feita no planeta: os muçulmanos e os não-muçulmanos.

A Turquia jamais vai ser admitida na União Europeia.

Ela não foi admitida por isso. E o governo Recep Tayyip Erdogan vem daí. Ele foi eleito por causa disso. Não é um governo islâmico, mas ele é muito eficiente como um governo islâmico. Estive lendo sobre a Turquia e fiquei muito bem impressionado sobre o ponto de vista dos muçulmanos. Não sou muçulmano, mas a esta altura estou torcendo para eles. No atual contexto, sou obrigado a torcer por eles.

Não por acaso, a Flotilha da Paz [navios que levaram suprimentos para os palestinos da Faixa de Gaza, em maio de 2010, e foram interceptados por Israel, numa operação que causou dez mortes e dezenas de feridos] saiu da Turquia.

Charge de Carlos Latuff contra o ataque de Israel à Flotilha da Liberdade em 2010

A Turquia era um baluarte da política norte-americana no Oriente Próximo e se quebrou por causa dos excessos do Estado de Israel contra a Faixa de Gaza. E foi eleito esse governo pró-Islã. Não se trata de um governo do Islã, mas sim favorável à defesa da religião nacional da Turquia, que, nos anos 20 do século passado, proclamou o Estado laico, mas não negou que a religião oficial da Turquia é o islamismo. O Estado turco é laico, mas ninguém pode na Turquia ser contra o islamismo. É impossível. Havia uma forte preocupação de que um partido que se declara defensor da cultura e das tradições islâmicas pudesse chegar ao poder. E, curiosamente, houve um problema de véu na Turquia. Uma deputada, que é norte-americana casada com um turco e foi eleita, foi proibida de usar véu, e houve um problema grande, por ser uma deputada.

Eu queria voltar ao ponto em que você falou sobre o comércio entre Estados Unidos e China, e na integração triangular dos outros países. Explique um pouco como é isso e se interfere no processo brasileiro, gera uma desindustrialização do país.

Agora vou citar o tio de uma amiga nossa, Luiz Filgueiras, um economista da Universidade Federal da Bahia que escreveu um livro sobre isso. Ele escreveu sobre a economia do governo Lula, onde fala da desindustrialização. O Brasil, ao se abrir totalmente à entrada de produtos estrangeiros (mas é uma abertura mais ou menos obrigatória para alguns países que estão na OMC, sob pena de serem multados), começou a perder unidades industriais. Algumas empresas se transferiram para a China, onde empregam trabalhadores chineses, e, aqui, a indústria foi fechada.

A China está na Organização Mundial do Comércio (OMC).

A China está na OMC, o que permite que o que eles produzem lá possa entrar aqui. A Embraer foi para a China e se deu mal. Mas, em todo caso, essas transferências para a China levaram a um fechamento muito grande de empresas brasileiras. E o Luiz Filgueiras dá, em termos de estatística, o ritmo da desindustrialização brasileira, principalmente no segundo governo Lula. Por outro lado, o Brasil criou uma relação de dependência das importações chinesas em insumos industriais, produtos semi-industrializados e primários. Como o Brasil tem a Amazônia para destruir, ele pode se beneficiar desse tipo de parceria, vamos dizer assim, mas é uma parceria desindustrializante, que significa o enterro do projeto brasileiro de se tornar o grande país industrial da América Latina.

E só para acrescentar, qual é o problema do enterro desse projeto, que a rigor foi assumido pela ditadura? Foi nessa época que se criou a maior parte do parque industrial brasileiro, porque, antes, Juscelino Kubitschek só tinha implantado a indústria automobilística. A ditadura levou adiante esse projeto. E qual a sua importância? Foi o aumento do nível médio de salário brasileiro, porque a exportação de produtos primários, inevitavelmente, cria diferenças de riqueza muito fortes, e ela é mais frágil em termos de participação na economia mundial. Como explicou Celso Furtado, a criação de um parque industrial significou criar uma classe operária com bons salários, como a do pessoal do ABC, onde surgiu o Lula, que era torneiro mecânico.

Qual é o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) hoje?

É gozado, o papel do BNDES tem um toque de ironia. No tempo em que era BNDE, sem o S, não se previa o desenvolvimento social, só o econômico, no entanto ele desenvolvia o econômico e o social. Quando acrescentaram o S, o social foi para o espaço. Mas isso o taoismo explica: quando falam muito de uma coisa é que ela parou de existir. Foi o que aconteceu no Brasil, o BNDES financia compras de empresas brasileiras por multinacionais estrangeiras, financiou a compra do Banespa pelo Santander, por exemplo. Então, o BNDES está nesse papel.

Já ouvi dizer que você é taoista...

Eu já me disse taoista, uma época antes de me dizer marxista.

De alguma forma, o BNDES está explorando os recursos da Amazônia, quando financia Belo Monte.

Sem o BNDES não funciona. Claro que vai entrar capital externo, mas o BNDES entra sem dúvida, o governo entra. Não resta a mínima dúvida de que o governo vai gastar nisso, através do banco, através de alguma medida que tenha efeito de subsídio, de alguma maneira vai entrar dinheiro público. Já está.

Você falou que o Japão estava com um processo ainda mais complicado do que a Grécia, mas ele não faz parte da União Europeia. Esse fato deixa a situação do Japão melhor, se é que a gente pode usar essa expressão, ou menos perigosa?

Eu não disse que estava numa situação mais complicada. Está mais simples. O Japão está com uma dívida pública muito grande, só que os credores são japoneses, então está sossegado. O Japão não paga juros altos aos credores dos títulos da sua dívida pública. Não corre perigo nenhum desse lado. Pode correr perigo se a economia dele fraquejar. Mas do lado das finanças, ele não é visto atualmente como fonte de preocupações, diferentemente da Europa, onde mesmo os países fortes estão envolvidos com títulos de investidores de todo o mundo, dos bancos privados europeus e/ou dos bancos centrais europeus, e da Inglaterra mais ainda.

Capa de “Les dettes illégitimes”, de François Chesnais.

Por diversas vezes, você mencionou a questão das dívidas ilegítimas, abordada por François Chesnais em seu livro. Você tem como falar um pouco disso?

A China está fazendo uma bandeira de batalha dessa proclamação das dívidas públicas ilegítimas, e eu acho que eles têm razão. O livro é muito bom. Recomendo a leitura, só que precisa ser traduzido do francês. Tem como título As dívidas ilegítimas [Les dettes illégitimes. O livro foi publicado em Portugal em 2012 com o título As dívidas ilegítimas: quando os bancos fazem mão baixa nas políticas públicas – NR]. Ele diz que as dívidas são frutos de operações financeiras parasitárias e que se pode escolher legitimamente entre atender as exigências dos credores dessas dívidas e atender aos reclames da população, que não foi consultada quando essas dívidas foram contraídas.

O argumento dele é que os bancos, inclusive o Banco Central Europeu, mas os bancos centrais em geral, não estão tendo mais as funções de auxiliares do processo produtivo, que é a tradição dos bancos, dos bancos comerciais privados e dos bancos centrais. Os privados forneciam o crédito para o circuito produtivo e comercial das mercadorias. E os bancos centrais dos diversos países forneciam o crédito de última instância. Quer dizer, o comércio descontava seus títulos nos bancos comerciais e os comerciais, nos bancos centrais, fechando o círculo e permitindo que todo mundo tivesse dinheiro na mão para pagar suas dívidas. Os bancos comerciais praticamente desapareceram, pois passaram a ter operações financeiras baseadas em investimentos financeiros e especulação em derivativos, derivativos da circulação. Títulos adicionais, ele explica muito bem (estou fazendo um ultra resumo), títulos adicionais criados sobre a circulação dos títulos financeiros de investimento primário. São operações que buscam ganhar dinheiro nas diferenças de juros que ocorrem no processo circulatório de títulos financeiros.

Antes, não tinha todo esse circuito financeiro com derivativos e tal. Mas sempre houve uma circulação financeira parasitária, que, quando chegava a um certo ponto, quando um banco ficava inadimplente porque tinha apostado em títulos que não tinham sustentação em produção real e acontecia aquela sequência de falências de casas financeiras, bancos etc., tudo começava sempre com a quebra de um banco. Alguns bancos faliam e os sobreviventes enriqueciam e ficavam mais poderosos. Os falidos se suicidavam ou começavam de novo da estaca zero, tentando reerguer o seu empreendimento econômico, juntamente com as empresas produtivas que também tinham falido. E assim recomeçavam a historia de reconstrução, ou saíam do mundo da burguesia e tornavam-se trabalhadores, como aconteceu com muitas famílias burguesas que foram para o mercado de trabalho. Os mais orgulhosos suicidavam-se. Essa era a tradição.

Agora o princípio é de que os grandes bancos não podem falir, não se permite que eles entrem em falência. Isso significa a permanência contínua dos fatores da crise, um dos quais é o excesso de capital. Um deles. O mais importante e mais diretamente ligado ao excesso de produção e excesso de capital dá a impressão de que se pode começar qualquer empreendimento, pois tem crédito barato e fácil para qualquer coisa. Antigamente, esse crédito parava em certo ponto e ninguém tinha mais dinheiro para investir. Agora não para, porque eles não deixam os grandes investidores financeiros de risco falirem. O crédito continua fluindo, então, a produção também se torna superior ao consumo possível. Aí vem o crédito ao consumidor, o crédito consignado. Isso é ilegítimo porque, no mínimo, é injusto, além de antidemocrático. Escolhe-se a salvação da minoria de ultra ricos ou de ricos menos ultra em detrimento do sofrimento da maioria da população. É o que Chesnais tenta demonstrar. Não há nenhuma razão para manter esse sistema financeiro que não tem mais nenhuma serventia para a continuidade de circulação dos processos produtivos.

Muitos teóricos contemporâneos acreditam que a comunicação eletrônica coloca em crise a forma de organização dos partidos social-democratas e socialistas. Dizem que as massas vão se organizar de forma não partidária. Você concorda com eles ou essa é uma questão em aberto?

Bom, essa formulação reflete um sentimento muito forte na Europa hoje, aliás difuso no mundo inteiro. Na Europa, os partidos tradicionais tiveram um papel relevante muito forte na vida política. O Partido Socialista francês, o Partido Comunista francês, o PC italiano, o Partido Trabalhista inglês são organizações poderosíssimas. O PS belga é uma potência política até hoje. Considerando que esses partidos se construíram ao longo de uma tradição de lutas que não foi fácil sustentar e que têm uma carga de história na qual as pessoas depositaram esperança, e que hoje em dia eles estão dizendo que é preciso aceitar o sacrifício que o capital financeiro exige, então a desilusão é muito forte.

E não é fácil criar organizações políticas que substituam isso aí da noite para o dia. É muito pesado refazer todo aquele trajeto histórico que foi feito por essas organizações. Então, há um sentimento muito forte de desistir de criar partidos e se organizar de uma maneira mais livre, menos rígida, menos vinculada. Isso aí está muito difundido. Não é só na Europa. Isso existe no Brasil, nos piqueteiros da Argentina, isso existe em toda a parte. Eu não sei se os movimentos dos trabalhadores, daqui para a frente até ao fim dos tempos, vai poder dispensar alguma forma de organização mais sólida, mais consistente do que uma simples rede de contato. Não sei, porque precisaria ser montada uma espécie de banco de informações que permitisse fazer alguns prognósticos mais seguros. Não sei. Prefiro deixar vago.

Você disse uma frase que soa espantosamente fria. Você diz que o Brasil tem um trunfo que os outros países não têm, que é a destruição da Amazônia. Você acredita na inevitabilidade disso, ou que, em algum grau, a nação brasileira possa se articular para resistir ao processo de destruição da Amazônia? Se no horizonte é perceptível, ou não, uma reação, ou se vamos ter que nos conformar com a destruição da Amazônia e ponto final.

É simples. O Brasil vai crescer ou não vai crescer? Se for crescer, vai ser assim. A não ser que compre uma briga com a OMC.

Mas existem movimentos de resistência a Belo Monte, por exemplo…

Charge de Carlos Latuff de 2011 sobre a exploração da Amazônia

Existem, mas que não relacionam Belo Monte à necessidade de crescimento do capital, apenas como necessidade de manter o nível de emprego, de pagar umas poucas despesas, as despesas com saúde educação. Sim, são muito ruins a saúde e a educação públicas, mas de qualquer maneira existem, e se o governo não tiver dinheiro a tendência é que piorem. Para que o governo brasileiro tenha dinheiro para pagar todas as contas e o mínimo de funcionários públicos, porque sem nenhum não é possível, e pagar os ricos salários do Judiciários e do Legislativo, porque isso não pode baixar, para pagar tudo isso vai ter que crescer. Se a população não está dizendo que o Brasil deve parar de crescer, qualquer governo vai ter a possibilidade de legitimamente destruir a Amazônia para crescer.

Nessa questão, a gente pode ser profeta tranquilamente. É fácil visualizar o futuro. E o futuro é assim: haverá a continuação do processo de destruição da Amazônia se o crescimento for mantido. Uma parte da Amazônia poderá ser salva, mediante um sistema de filantropia brasileiro e estrangeiro de comprar trechos da floresta para preservação. Esses pedaços não são mais a Amazônia, porque não são contínuos e vai ser complicado fazer com que funcionem como Amazônia. Isso já está acontecendo, em pequena escala, mas é a tendência dominante. Então, a profecia é fácil nesse terreno, porque é o que está em andamento.

Você acha que é preciso manter esse crescimento? Não existe ociosidade no Brasil que nos salve dessa destruição?

Não é uma questão de escolha, são os investidores: o que é mais barato, mais rápido em termos de retorno de investimento? Eles calculam retorno, tem prazo de retorno. O verdadeiro cálculo é o retorno, não é a taxa de lucro. Antigamente, era taxa de lucro, no tempo em que Marx falava de taxa geral e lucros. O pessoal que investe está no setor financeiro. Quando eles saem do setor financeiro para investir no setor produtivo querem saber o tempo que vai demorar para retornar o investimento feito. É assim que funciona. E o retorno mais garantido e rápido é o da Amazônia.

A questão envolve um drama civilizacional. No caso da Raposa Serra do Sol, houve uma reação aos plantadores de arroz que foi, pelo menos parcialmente, vitoriosa. Para a destruição da Amazônia você vai ter que destruir nações, povos originários. Isso mexe com a questão civilizacional, mexe com o imaginário universal. Eu não daria de barato que não há como resistir a esse processo, porque o ônus de destruir a Amazônia, tendo para isso que destruir tradições indígenas e povos indígenas inteiros, será imenso para o governo. Não sei se o governo, qualquer governo, mesmo o Lula, tem cacife para fazer isso. Por isso, quero insistir nessa pergunta, qual o significado simbólico e cultural dessa questão?

Até onde sei, a área da Raposa Serra do Sol, vendo o mapa dos tipos de vegetação, não era uma zona tipicamente florestal, tinha áreas de campo que atraíam os arrozeiros. Que eu saiba, eles vendiam para o mercado interno, não eram exportadores de arroz. Portanto, eles não comprometeram o projeto de crescimento que está baseado na destruição da Amazônia para criação de gado e plantação de soja destinados à exportação. Ali é diferente, o que fez com que a pressão internacional – porque a pressão foi internacional – fosse bastante eficaz. Mesmo assim, nosso Supremo Tribunal Federal arrastou a sandália tanto quanto pôde. Por outro lado, existe essa preocupação com os povos originais. Olha, vou te dizer com franqueza, não acredito nessa proteção, mesmo com essa exceção da Raposa Serra do Sol, porque teve índio a favor da destruição da reserva. O que há de povo primitivo ali já é bem pouco.

Em matéria de salvação de povo primitivo, o Brasil não tem nenhum exemplo a dar a ninguém. Na verdade, é um exímio imitador dos Estados Unidos, que é um exterminador de índios, não necessariamente exterminador físico, mas exterminador das nações indígenas. Quando o Brasil cria reserva, preserva apenas os indivíduos remanescentes, não a nação indígena. Vou me reportar a Villas-Boas, que viu o Exército brasileiro, no tempo da ditadura, metralhar índios, coisa que não se fazia no tempo do general Rondon. Viu metralhar, atirar nos índios como se atira em exército inimigo, sendo que os índios estavam com arcos e flechas, razão pela qual ele pediu para se retirar da missão de acompanhante do Exército. Ele disse isso numa entrevista que ouvi nos anos 1970. Naquela época ele já alertava para o fato de que a população indígena estava crescendo nas estatísticas, que é justamente o que acontece quando a população indígena deixa de ser nação e passa a ter uma inserção na economia brasileira como assistido ou favelado.

E é esse o futuro que eu vejo também. Isso significa que vai haver movimento vitorioso pela preservação de parques nacionais indígenas – e, para mim, parque nacional é jardim zoológico, é indigno da espécie humana, não devia existir. Ou uma nação tem direito a um território ou está fora do gênero humano. E essa é a situação dos povos indígenas em toda a América. Estou dando a minha opinião, mas também estou fazendo um prognóstico. Me recuso a ler notícias sobre índio, porque eu sei como funciona a coisa e não aceito. Então, não leio para não me incomodar, para não estragar o meu dia.

Eu gostaria que você explicasse como funciona o que chama de simbiose entre o Estado burguês e o capital financeiro e o quanto isso é importante para a sustentação do capitalismo. Essa simbiose sustenta-se, ou não, por muito tempo? Para onde aponta e o que pode significar no futuro?

Não é questão de sustentar-se ou não. É uma necessidade, do ponto de vista do capital. Quebrar isso significa quebrar o poder do capital. Até onde vai sustentar-se? Até onde existir o capital nessa etapa do desenvolvimento. A não ser que se volte atrás, mas aí não vai ser mais capital. A roda da história não volta para trás. A roda da história dos modos de produção e do modo de produção capitalista tende a evoluir para isso necessariamente.

A simbiose pode ser constatada, de maneira simplificada, através do volume das reservas monetárias. Os volumes de reservas monetárias estão hipertrofiados na atualidade. Só países que não têm condições de constituir reservas em divisas fortes, particularmente em dólar, é que não têm uma reserva hipertrofiada. E o Brasil, que já foi acusado de não ter reservas em quantidade suficiente, hoje em dia está entre os países considerados com boas reservas, algo em torno de US$ 300 bilhões como reserva de segurança para credibilidade da nossa moeda. O simples fato de existirem reservas dessa envergadura, que correspondem a 1/3 do PIB, que beira US$ 1 trilhão, revela a simbiose.

Um terço do PIB é muito, porque é um dinheiro que sai da circulação de mercadorias, da circulação internacional de mercadorias, que não está na circulação de mercadorias do país. É uma reserva para atender a compromissos externos, que não é aplicada na produção de mercadorias que circulam no mercado internacional. Portanto, é um ônus para o processo de circulação de mercadorias. E Marx já dizia, naquele tempo, que o fato de a reserva ser pequena revelava uma boa saúde da circulação de mercadorias, do sistema de circulação de mercadorias no plano internacional, e que quando essas reservas cresciam muito é porque a circulação estava emperrando e havia uma ameaça de colapso, de crise, e a salvação estava em acumular reservas. Assim é que funcionou sempre. O capitalismo funciona assim. É da natureza dele.

Agora, modernamente, quando os países começaram a acumular reservas monetárias gigantescas foi em função de uma relação estabelecida com o dólar através da finança internacional. No caso do Brasil, por exemplo, mas também de outros países, há um fluxo constante de capital externo para cá, para sustentar os investimentos internacionais, para que o governo brasileiro pudesse emitir títulos em real para circular no mercado internacional, nas bolsas de valores do mundo inteiro. Então, de repente, o Brasil adquiriu o direito de emitir títulos em real, e tem gente que compra. Isso só aconteceu devido ao fluxo de investimentos externos constante que entra no Brasil, porque a economia brasileira é vista como uma economia que tem possibilidades de continuar crescendo em função dos recursos naturais e outros elementos, mas que também tem a garantia de uma reserva forte.

O que é que estão fazendo o Vietnã e todos os países que antes eram do socialismo real e entraram no OMC? O Vietnã agora está fazendo manobras militares conjuntas com a marinha dos Estados Unidos. Não é bem visto falar da Guerra do Vietnã nos jornais vietnamitas de hoje. Eles simplesmente cortam os artigos mais ferinos. O Vietnã está acumulando reservas e abaixando o salário dos trabalhadores e está com uma economia voltada para a exportação para os Estados Unidos. Isso indica um Estado como âncora dessa política econômica sustentada pelos capitais internacionais, que buscam o lucro máximo e o retorno rápido.

A simbiose está nesse elemento básico. Constata-se simplesmente vendo o tamanho das reservas monetárias em relação ao PIB de cada país. Tem que calcular o PIB em dólar para fazer a relação certa. Essa é a primeira coisa A segunda é a política de juros. A brasileira é um escândalo. A medida dos juros que o Brasil precisa pagar para manter o seu crédito, o ritmo de fluxo de capitais que melhor lhe convém, é alta. Esse é o outro indicador dessa simbiose e é o governo que determina isso. Claro que para não determinar isso, esse governo teria que romper os fundamentos de sua política econômica e monetária, no meu entender trocar a moeda, porque essa moeda não se sustenta.

Mas você acha que isso está ameaçado pela resistência popular, por manifestações sociais? Como você vê essa onda de protestos globais?

Se tiver algum tipo de ameaça vem daí. Em que consiste essa ameaça? Ela tem o sentido de basta. Quer dizer o seguinte: na próxima oportunidade que for proposta uma medida de redução de salário, de cortes de benefícios sociais, esse movimento vai ser um centro catalisador de uma resistência popular que pode se ampliar muito rapidamente. É assustador nesse sentido, porque uma coisa é propor corte de benefícios sociais e salários quando não tem ninguém erguido contra a finança, outra coisa é quando há pessoas mobilizadas contra a finança. Evidentemente, fazer uma nova proposta de cortes e sacrifícios faz desses movimentos um centro catalisador de revoltas populares que podem vir a tornar-se incontroláveis. É esse sentido de basta que é assustador. É nisso que consiste a ameaça.

Temos a crise europeia, a Primavera Árabe, o confronto entre Israel e Palestina. Existe uma movimentação muito grande no mundo, mas parece que essas manifestações não têm uma direção, uma organização que aponte objetivos claros. Parece que não têm continuidade, que estão dispersas. Você acha possível essas movimentações continuarem crescendo sem um partido que as organize? Ou a questão da organização não está posta?

Protesto contra Mubarak na Praça Tahrir, no Cairo, em 2011. Foto de Mona.
Protesto contra Mubarak na Praça Tahrir, no Cairo. Foto de Mona.

O mais importante é esse sentido de basta. Porque isso é realmente assustador para os governos que estão engajados nessa política de sacrifícios da população e para a finança internacional. Isso ai é de gelar o sangue na veia deles. São muitas mobilizações significativas espalhadas por muitos países. Recentemente, teve na Itália uma mobilização gigantesca. Isso é o principal. Quanto à organização, não tenho nenhum prognóstico a fazer.

O que posso dizer é que na medida em que o movimento se tornar suficientemente grande ele vai encontrar as formas de organização adequadas às suas necessidades. Então, até que ponto vão se repetir formas de organização já experimentadas ou vão ser criadas novas, eu prefiro não prever. Porque não temos nada que prenuncie uma organização nova. Então, não faz sentido ficar fazendo prognóstico sem fundamento nenhum. Mas já existe uma unidade, o alvo já está definido. Existe uma unidade quanto ao alvo que é apontado como o culpado pelos governos, que é a finança, e as políticas dos Estados a favor dessa finança, aquilo que eu chamo de simbiose Estado-capital financeiro.

Até agora todas as medidas para superar as crises foram troca-troca financeiro. O que seriam medidas do sentido oposto? Redução da jornada de trabalho, por exemplo?

Programa de medidas, eu não gosto de apresentar, porque quando a gente as apresenta, penso eu, temos que apresentar a viabilidade delas. Então, no momento, os trabalhadores estão exigindo emprego. Quando acontece uma crise, eles exigem manutenção do emprego. Os próprios analistas da crise acharam que foi correto recorrer a uma jornada de trabalho menor. Só que a jornada menor ocorreu através da flexibilização. A jornada média ficou menor. Logo, o próprio processo econômico indicou que, por exemplo, na Europa, uma jornada de 33 horas seria mais adequado do que a manutenção da jornada de 38, 40, 45 horas, conforme o país. Isso aí, o processo indicou. E os jornalistas e analistas econômicos reconheceram que as jornadas médias foram reduzidas. A produção diminuiu e os trabalhadores continuaram recebendo pelo menos uma parte do salário em função da flexibilização. A diminuição da jornada de trabalho é um recurso imediato para enfrentar uma crise.

Além disso, evidentemente, o necessário seria uma quebra do poder no capital financeiro, uma mudança nas políticas do Estado que implicaria deixar os bancos falirem. Não há como, do ponto de vista do capital, fazer com que o ciclo capitalista se complete, como se completava no passado. Tem um movimento ascendente, o apogeu, depois o declínio e a crise. Essa crise significa quebra de certo número de empresas, bancos e retomada para um novo ciclo. É assim que sempre funcionou. Só que hoje em dia o capital financeiro tem um poder que antes não tinha.

Então, precisa quebrar esse poder do capital financeiro, quebrar a simbiose do Estado com o capital financeiro. Por isso, em meus textos falo em crise rastejante, porque essa crise vai se arrastar indefinidamente enquanto não houver realmente uma quebra do sistema financeiro. Que não vai ser uma catástrofe. Pode ser uma catástrofe se continuarem tentando salvar mediante medidas que no fundo agravam a dimensão do problema e, nesse caso, quando finalmente resolverem abandonar a política de sustentação dessa política, o tamanho do problema terá chegado a um nível tão alto que a quebra vai ser realmente fragorosa. O perigo está aí e o Chesnais fala que as finanças estão preparando uma catástrofe para a humanidade.

Você não acha que está no horizonte do capitalismo a possibilidade de uma destruição das forças produtivas monumental no Oriente Médio, por exemplo, um ataque de Israel ao Irã?

Olha, em termos de tradição histórica, há exemplos disponíveis para nos mostrar como funciona. Pode-se verificar que, nas suas crises, os grandes impérios foram mais nocivos e destrutivos do que em sua época de boa saúde. Então, na medida em que se agravar a situação econômica do império, pode perfeitamente acontecer que o império parta para medidas políticas baseadas na pura força militar. Pode ser tremendamente destrutiva para partes significativas da população mundial e, evidentemente, que o alvo imediato a ser destruído será o Oriente Próximo, o Oriente arábico que mais resiste.

Então, isso pode se colocar como uma possibilidade, a não ser que os trabalhadores da Europa e dos Estados Unidos o impeçam. Em todas as ocasiões que os trabalhadores foram vitoriosos, eles contavam com o apoio de uma corrente de opinião pública forte. Isso aconteceu na Revolução Russa e assim por diante, A não ser que ocorra isso numa dimensão capaz de parar esse processo de salvação a todo custo do império, que está baseado na dominação do capital, se não houver isso evidentemente a gente deve esperar ações extremamente destrutivas.

Eu li recentemente uma notícia , por exemplo, que os americanos estão prevendo ações unilaterais no Paquistão, e não sei que ações unilaterais são essas, mas eu sei que o próprio chefe do Estado paquistanês mandou uma mensagem dizendo que a Casa Branca pense dez vezes antes de partir para essa política de ações unilaterais. O projeto americano está sendo derrotado no Afeganistão, então eles querem limpar o terreno na região. Os americanos querem adotar uma política que trata o Paquistão em combinação com o processo afegão por razões ate étnicas, por causa das populações pastum no Paquistão e também por causa da religião islâmica. O Paquistão, situada numa região que fazia parte da Índia, foi criado porque não quis ser hinduísta, ele quis ser islâmico.

A política anti-Islã para o povo paquistanês é muito dolorosa, o que faz com que os Estados Unidos não possam confiar sequer na policia secreta do Paquistão. Policia secreta ou não de qualquer maneira eles são islâmicos e isso complica muito a política no Paquistão, do ponto de vista dos Estados Unidos. Mas eles precisam sair do Afeganistão, sair de uma maneira não catastrófica, sem perder a mobília, como diziam os ingleses quando abandonaram suas colônias: vamos perder nossas colônias sem perder nossas mobílias. Eles eram mestres nessa parte. Só que os americanos nunca foram, então a situação é complicada e contém ameaças muito fortes.

Nos Estados Unidos, desde antes mesmo dessa crise, ativistas como o cineasta Michael Moore resolveram propagandear, de certa maneira, a autogestão e o cooperativismo. Seria uma alternativa viável, ou isso poderia favorecer mais o capital?

Eu acho que não é uma solução, porque o cooperativismo a que ele se refere é o das cooperativas de produção. E elas só funcionam em pequena escala e em alguns segmentos das atividades produtivas que permitem reservar um nicho de atividade viável nos interstícios do sistema capitalista. Nessas condições funciona. Caso contrário não, porque não tem possibilidade de suportar a concorrência das empresas capitalistas tradicionais. Não tem como disputar com as indústrias automobilística e eletroeletrônica, nem sequer na agricultura, no mercado de commodities.

Nem pensar, não é uma saída para os problemas do capitalismo. Teria que haver uma quebra das relações capitalistas para que outro sistema prosperasse, mas não seria o cooperativismo tal qual a gente o conhece hoje. Isso não seria nem cogitado no momento em que houvesse uma quebra do sistema capitalista, uma quebra no processo de encadeamento das diversas funções do sistema. Nesse momento, o cooperativismo tal qual é visto hoje desapareceria do cenário, tanto assim que Marx nem coloca essa questão, e quando a coloca o faz em forma de sociedade anônima, não cooperativismo, embora ele apoiasse as iniciativas dos trabalhadores que resistiam a entrar nas fábricas, que eram ambientes muito inóspitos, muitos escuros, com condições de trabalho muito ruins.

Muitas pessoas que vinham do trabalho artesanal tentavam se salvar de entrar nas fábricas montando cooperativas. Marx apoiava essas iniciativas, mas não as via como saída, como salvação. Quando ele falou de sucessão da forma de organização da produção capitalista, ele pensou em formas que se baseavam na sociedade anônima capitalista, só que não seria capitalista, seria outra coisa, mas não cooperativa. Vamos descartar isso daí, Michael Moore está errado.

Quando foi lançado o sítio Interludium, a apresentação causou certa estranheza a algumas pessoas, ao fazer referência específica ao povo palestino. No ato de lançamento do sítio, realizado na Apropuc [Associação dos Professores da PUC-SP], ouvi comentários atrás de mim, do tipo “mas por que só o povo palestino? Quer dizer que o sítio não se importa com outros povos?” Por que se considera que o povo palestino é um ponto fundamental de quem se pretende como resistência ao capital? E o que você pretende com esse sítio Interludium?

Palestina com bandeira eme Gaza, 2018. Hosny Salah
Palestina na Faixa de Gaza. Foto de Hosny Salah.

Por quê? Pela razão que levantei quando falei da situação dos imigrantes na Europa. Existe uma política de hostilidade que está ligada aos sans papiers, mas não a todos os sans papiers. Os africanos não islâmicos são vistos com uma condescendência que não é dada aos imigrantes sans papiers ou avec papiers de origem islâmica. E como isso tem o apoio de setores amplos da população, inclusive de gente que faz parte de organizações que se declaram anticapitalistas, revela um cenário ou um prognóstico extremamente perigoso de cisão da humanidade. Cisão da humanidade em boas e más etnias e boas e más religiões, religiões terroristas e não-terroristas. Isso é uma cisão do gênero humano.

É uma posição assumida pelo sítio e eu acho que sou suspeito para falar sobre ele, porque estou envolvido. Mas sobre a questão do apoio à nação palestina, ao povo palestino, achei importante que isso fosse explicitamente declarado. Apesar do mau estilo: da maneira como ficou colocada a frase, estragou a literatura; parece uma coisa que de repente a gente se lembra mas não tem o embasamento que levou a essa lembrança. Como não queríamos fazer um texto longo, preferimos fazer uma má literatura e ficou um texto feio, com essa frase enfiada no meio, mas ela é extremamente importante.

A questão da nação palestina é um alimentador dessa separação. Enquanto não for resolvida a separação que se mantém, porque os palestinos contam com a sensibilidade profunda dos povos islâmicos, particularmente do Oriente Próximo, do Oriente arábico, em menor grau do Oriente Médio, o cenário é sombrio. Por exemplo, a hostilidade contra o Irã vem do fato do governo de Mahmoud Ahmadinejad não prestar as devidas homenagens ao Estado de Israel, e não pelo fato de ser um governo iraniano islâmico. Se eles se submetessem ao ritual de louvação ao Estado de Israel, cessaria o incômodo, a hostilidade. Agora, aos povos arábicos é impossível impor uma conformidade com a destruição da nação palestina, inclusive aos povos da Arábia Saudita, que se beneficiam extremamente com a aliança econômica com o Ocidente.

Então, isso aí é um foco de tensão que digo, repito, pode ser interrompido por um movimento favorável à nação palestina, aos trabalhadores e aos imigrantes de religião muçulmana, à defesa dos seus direitos religiosos e étnicos nos respectivos países, pelos trabalhadores e pela opinião pública nos países da Europa ocidental. Infelizmente, não está havendo nenhum indício de criação de uma corrente de opinião de trabalhadores no sentido de defesa desses direitos.

Acho essa questão muito perigosa porque cinde a humanidade. Não vai ser grátis destruir essas nações do Oriente Próximo, quebrá-las para que se submetam à política do império americano. Não vai ser sem um custo alto em termo de vidas humanas. Então, é impossível que um sítio eletrônico como Interludium, que pretende se comunicar com as pessoas, que pretende ajudar a construir uma humanidade melhor, omita esse ponto. Então preferimos fazer um mau trecho literário a esquecer de levantar isso.


Esta entrevista, publicada aqui em versão integral, foi concedida por Vito Letizia à revista Caros Amigos, em 28 de outubro de 2011. No ano seguinte, ela foi reproduzida no livro de ensaios A grande crise rastejante, lançado pela editora Caros Amigos.

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