Vito Letizia faz uma análise sobre o livro História e Consciência de Classe, de György Lukács.
A partir de uma excelente exposição do pensamento de Engels sobre a contradição entre os motivos que fazem os homens agir e as forças históricas que fazem tais motivos surgir, Lukács vai além e cria um edifício de arrazoados sobre um assunto que não mereceu atenção, quer de Marx quer de Engels: “a consciência de classe”.
O novo tema adquiriu interesse quando da vitória bolchevique na Rússia e das inevitáveis comparações do partido russo com a social-democracia da Europa Ocidental. A todos os esperançosos no futuro da Revolução de Outubro pareceu que os bolcheviques teriam atingido um “nível de consciência” superior, capaz de iluminar o caminho para o socialismo. Esperança que depois se frustrou. De qualquer modo, o novo debate foi mal enfocado. Marx, provavelmente, teria preferido discutir até que ponto o Partido Bolchevique vitorioso estaria sendo uma expressão consciente do processo histórico, mais do que saber se os bolcheviques teriam atingido uma consciência de classe maior ou menor do que a dos militantes dos demais partidos operários.
Mas Lukács, seguindo a tendência do momento, vinda da Rússia, centra suas atenções naquilo que poderia ser a “consciência de classe” enquanto grau de compreensão do processo histórico pelo partido. Seguindo este caminho, tira algumas conclusões interessantes, mas também arriscadas.
Em sua primeira parte, o texto começa com uma aparente prudência algo superficial:
“…a essência do materialismo histórico consiste em reconhecer a independência das forças motrizes reais da história em relação à consciência (psicológica) que os homens têm delas.” (Parte I, página 68)
A frase não parece revelar alguma coisa realmente essencial do pensamento de Engels, pois o que Lukács diz aqui é que as forças motrizes da história nada têm a ver com as ideias que os homens se fazem a respeito delas, o que é simplesmente uma rejeição do idealismo. Por outro lado, dizer que os homens têm uma consciência “psicológica”, ou seja, uma consciência naturalmente humana de nada menos que “das forças motrizes da história”, já é uma presunção de chocar até as aranhas da alta tecelagem de teias.
A seguir, Lukács tenta fazer uma exposição dos fundamentos e características da consciência de classe. E incia tentando definir a consciência de classe em geral:
“Essa consciência não é, pois, nem a soma nem a média do que os indivíduos que formam a classe, tomados um a um, pensam, ressentem, etc. E, no entanto, a ação historicamente decisiva da classe como totalidade é determinada, em última análise, por essa consciência, e não pelo pensamento, etc, do indivíduo; essa ação só pode ser conhecida a partir dessa consciência.” (I-73)
Aqui se diz, em primeiro lugar, que a característica fundamental da consciência de classe é não ser a soma nem a média das consciências individuais, sem dizer qual é a característica fundamental. Em segundo lugar, se diz que a ação histórica decisiva é “determinada” por essa consciência de classe (que não é soma nem média das individuais). Não seria melhor inverter o sentido da frase? Pois está mais de acordo com o pensamento de Marx dizer que é a ação histórica que determina (melhor seria dizer “condiciona”) a consciência de classe, e não o contrário. Porque é a ação dos capitalistas, enquanto compradores de força de trabalho, que condiciona sua consciência burguesa, ainda que esta nem sempre se apresente como consciência de classe burguesa. Igualmente, é a ação dos trabalhadores, em sua resistência à pressão do capital sedento de lucro, que condiciona fundamentalmente sua consciência de classe proletária. Sendo que esta última consciência é, necessariamente, de classe, porque só coletivamente os operários obtêm capacidade de resistir à pressão do capital.
“A vocação de uma classe à dominação significa que é possível, a partir de seus interesses de classe, a partir de sua consciência de classe, organizar o conjunto da sociedade segundo seus interesses.” (I-75)
Os materialistas deveriam evitar o hábito – herdado do idealismo – de atribuir vocações a entes coletivos. Expressão desse hábito é o discurso sobre “a missão histórica da classe operária” ou sobre a “vocação” de uma classe social. Os burgueses não dominam a sociedade capitalista por vocação. Eles precisam de um Estado que domine as classes subalternas para exercer a coerção indispensável ao bom funcionamento da relação de produção capitalista. Cada burguês, e até a maioria dos burgueses, pode ter vocação para monge, mas os que tiverem capital a valorizar precisarão dominar e coagir diretamente ou pôr a seu serviço um Estado coercitivo.
Os trabalhadores já estão, por serem classe dominada, postos à força na vida ascética e obrigados a lutar constantemente contra o aumento de suas privações. Entretanto, segundo Marx, a produção cooperativa moderna pode funcionar sem a exploração do homem pelo homem. Decorre disso que os trabalhadores não precisarão erigir-se em classe dominante para fazer a economia funcionar sob seu controle; a derrubada do Estado burguês basta. O que significa que os trabalhadores:
– não terão necessidade de um Estado coercitivo para defender seus interesses coletivos elementares;
– e, na sociedade capitalista, mesmo quando em situação de vantagem na luta social, não se dão o objetivo de organizar sua dominação como classe.
Isso tudo significa que, usando o linguajar de Lukács, a vocação à dominação não tem fundamento material na classe operária. E, no caso da burguesia, embora se possa dizer, com Lukács, que a vocação da burguesia é organizar o conjunto da sociedade segundo seus interesses, não cabe dizer que ela faz isso “a partir de sua consciência de classe”. Porque o contrário é mais verdadeiro: é a partir de seu movimento por impor e defender a relação capitalista de produção que a burguesia desenvolve uma vocação para impor um sistema de dominação.
“…quando a crise econômica final do capitalismo começa, o destino da revolução (e com ela o destino da humanidade) depende da maturidade ideológica do proletariado, de sua consciência de classe.” (IV-95, grifo do autor)
Em 1918, a consciência de classe dos bolcheviques, da qual, segundo Lukács, dependia “o destino da humanidade”, teve como principal utilidade metê-los numa guerra suicida contra a revolução camponesa. Em 1920, Lukács não podia ver as consequências daquela orientação. Entretanto, o materialismo histórico pensado por Marx permite ver a revolução como um processo necessário, e não como realização de um destino, só alcançável graças a consciências proletárias ideologicamente “maduras”. Mas era realmente muito difícil ver, durante o turbilhão revolucionário de 1917-1920, que toda revolução avança e recua parcialmente, acompanhando o aprendizado político das massas, tendo por isso uma forma “permanente”, isto é, de vagas sucessivas, até que os últimos explorados e oprimidos ganhem voz e ascendam ao primeiro plano da cena política. E é necessariamente assim porque nunca os já satisfeitos com as conquistas realizadas saberão representar os ainda oprimidos.
“Essa mesma estrutura da consciência, sobre a qual repousa a missão histórica do proletariado, o fato de remeter para além da sociedade existente, produz nele a dualidade dialética. Aquilo que, nas outras classes, aparece como oposição entre interesse de classe e interesse da sociedade, entre a ação individual e suas consequências sociais, etc., como limite externo da consciência, é agora transferido, enquanto oposição entre interesse momentâneo e objetivo final, para o interior da consciência de classe proletária.” (IV-98)
Mesmo aceitando, por comodidade, a expressão “missão histórica do proletariado”, não se pode dizer que tal missão “repousa sobre sua consciência de classe”. Repousa sobre sua situação central no processo histórico, movido pelas contradições crescentes que a defesa da lucratividade do capital vai acumulando, até chegar à explosão social. E as consciências de todas as classes sociais é que se formam e repousam sobre esse processo.
À parte isso, o problema maior desse trecho de Lukács é a tese de que, no “interior da consciência de classe proletária”, se desenvolveria uma “oposição entre interesse momentâneo e objetivo final”. Se isso quer dizer alguma coisa inteligível, só pode ser que, em algum momento, surgiria uma oposição entre a perspectiva socialista e os interesses momentâneos dos trabalhadores no processo revolucionário. Partindo daí, deve-se entender que o processo revolucionário desencadearia, “dentro” da consciência de classe dos trabalhadores, uma oposição entre finalistas e imediatistas, estes últimos tendo que ser talvez corrigidos pelos interessados mais no futuro do que no presente da revolução. Infelizmente, pelo que a história tem mostrado, o futuro desejado por todos os finalistas conhecidos até agora não é o que a classe operária nem a humanidade almejam. A longa experiência humana posterior à da época revolucionária de Lukács talvez indique que existe uma oposição mais importante, no exterior da consciência de classe, entre o objetivo final dos aparelhos políticos dos trabalhadores e o processo histórico empurrado pelo movimento da classe proletária.
“Esse dilema [Zwiespalt] oferece entretanto um meio de compreender que a consciência de classe não é a consciência psicológica de proletários individuais ou a consciência psicológica (de massa) de seu conjunto… mas sim o sentido, tornado consciente, da situação histórica da classe.” (IV-98-9)
Enfim, a solução do dilema entre interesse momentâneo e interesse final: a consciência de classe, segundo Lukács, seria: nem consciência individual nem de massa, mas sim consciência do sentido (o grifo é dele) da situação histórica, ou seja, do rumo tomado pelo movimento histórico.
Pode-se dizer que a luta dos trabalhadores contra o capital dá um sentido ao processo histórico, no caso o sentido da superação do modo de produção capitalista. A luta dos trabalhadores, porém, só adquire uma dimensão histórica quando é de massa e não é razoável pretender que a massa enfurecida com os abusos da exploração capitalista perceba o fim último de sua luta. Este tipo de ideia é mais próprio da intelectualidade e, em geral, está misturado com expectativas e projeções discutíveis. Por que isto seria uma consciência de classe melhor que as outras? É mais próximo do pensamento de Marx, e até mais prudente, confiar na simples consciência da necessidade de combater o capital, manifestada pela massa em movimento.
“O conselho operário revolucionário, que não deve ser confundido com sua caricatura oportunista, é uma das formas pelas quais a consciência da classe proletária lutou incansavelmente desde seu nascimento. Sua existência, seu contínuo desenvolvimento, mostram que o proletariado já está no limiar de sua própria consciência e, em consequência, no limiar da vitória. Porque o conselho operário é a superação econômica e política da reificação capitalista.” (IV-106)
Aparentemente, Lukács está se referindo aos conselhos operários das revoluções na Rússia e na Alemanha (nesta última,os räte do fim de 1918). Ficou devendo uma indicação do lugar e momento em que teriam aparecido os conselhos oportunistas a que se refere. No entanto, fica-se informado de que os operários dos conselhos não-oportunistas estavam “no limiar de sua própria consciência”, já superando a reificação capitalista. Como é que ele sabia? Hoje, porém, se sabe que não era isso.
“A luta por essa sociedade, da qual a ditadura do proletariado só é uma simples fase, não é somente uma luta contra o inimigo exterior, a burguesia, mas, ao mesmo tempo, uma luta do proletariado contra si mesmo: contra os efeitos devastadores e degradantes do sistema capitalista sobre a consciência de classe… O proletariado não terá arrancado a verdadeira vitória se não quando tiver superado esses efeitos em si mesmo. A separação dos diferentes setores que deveriam estar reunidos, os diferentes níveis de consciência aos quais o proletariado atualmente chegou nos diversos domínios, permitem medir exatamente o ponto atingido e o que resta a conquistar.” (IV-106-7)
A primeira parte desse trecho apresenta uma ideia que se tornou uma espécie de marca registrada dos lucákcsianos: que a luta pela sociedade para a qual aponta a ditadura do proletariado exigiria um combate do proletariado “consigo mesmo”. Isso, dito em 1920, soava como uma teoria ad hoc para justificar a repressão dos trabalhadores na Rússia.
Mas querendo encaixar essa ideia, de alguma maneira, no materialismo histórico, se poderia dizer que o partido, sendo, pelo menos por definição (se nem sempre de fato) a parte mais avançada do proletariado, ele teria que lutar contra a parte atrasada para defender o prosseguimento da revolução. O problema desta explicação é que põe, no lugar do processo histórico real, um processo teórico. Porque atribui ao partido (supondo que haja um só “legítimo”, sempre dirigido pela tendência “certa”) que está no poder o monopólio da elaboração teórica, reservando às restantes tendências do proletariado o puro aprendizado das ideias salvadoras, a serem defendidas a todo custo.
Não há como encaixar isso no método de Marx, para o qual o processo revolucionário que abre o caminho ao socialismo é, necessariamente, um processo prático de trabalhadores em cooperação livre. Pois, segundo este método, a humanidade só poderá erguer-se acima do modo de produção vigente por meio da atividade dos que trabalham e criam livremente. Lukács até tinha o direito de iludir-se com a defesa intransigente da linha política de um partido suposto como capaz de guiar o proletariado ao bom caminho. Os fatos posteriores, porém, provaram que, no processo histórico real, não há guias infalíveis.
A segunda parte do trecho acima agrava os problemas da primeira, ao diferenciar vários “níveis de consciência” do proletariado, que seriam resultantes dos “efeitos devastadores e degradantes do sistema capitalista sobre a consciência de classe”. O grave aqui é o lado condenatório da diferenciação de níveis de consciência, visto que permite a definição de proletários com consciência “degradada”, talvez só recuperáveis por uma severa “reeducação”.
Marx até viu certa degradação no comportamento do lumpemproletariado, mas nos proletários viu principalmente a degradação de sua vida material e a destruição de sua vida familiar; além disso, viu menor e maior grau de desenvolvimento da organização dos trabalhadores. Sendo que atribuía a desorganização de uma parte do proletariado ao grau incipiente de desenvolvimento das contradições do capitalismo, e não à deterioração maior da personalidade de certos grupos de explorados.
E além do mais, acaso só os trabalhadores desorganizados sofrem os efeitos degradantes do capitalismo? As direções das organizações operárias não? Na sociedade capitalista, ninguém tem condições de ser juiz dos efeitos degradantes do sistema sobre a consciência de classe dos outros. E, uma vez derrubado o poder burguês, é o grau de auto-organização dos oprimidos mais destituídos de alma própria pela violência do capital que dará a medida do processo de construção da nova sociedade de homens livres.
Este artigo de Vito Letizia foi publicado na revista O Olho da História de junho de 2010.