Uma análise a partir de ‘O Capital’, de Karl Marx
Marx demonstrou que as formas de manifestação do valor decorrem das contradições sociais que põem em movimento as mercadorias. Com esse método crítico, ele estudou o valor na sociedade capitalista, com os desdobramentos acarretados pela expansão e diversificação da produção capitalista de mercadorias.
A teoria crítica do valor não deve ser confundida com a teoria do valor-trabalho de Adam Smith. Porque, embora ambas teorias reconheçam o trabalho como fundamento da quantificação do valor, “trabalho” e “valor” não têm o mesmo sentido em Marx e Adam Smith. Enquanto este último atribui valor de uso e valor de troca a todas as “coisas” (ou “bens”), Marx distingue as mercadorias, com valor de uso e valor, dos simples objetos úteis, que só têm valor de uso.
Valor é o conteúdo social, próprio das mercadorias. Estas surgem ao longo da evolução histórica das sociedades humanas, como resultado da necessidade de trocar produtos de trabalhos diferentes. E as relações de troca necessárias criam a vida social das mercadorias, que é o que lhes dá um conteúdo diferente do conteúdo social dos objetos úteis trocados como presentes e do conteúdo natural dos objetos nunca trocados.
Enquanto A. Smith vê nas trocas apenas uma tendência natural do homem, Marx vê nelas uma relação social própria das sociedades organizadas nos modos de produção que exigem trocas.
E enquanto A. Smith vê apenas um curioso paradoxo na disparidade entre o valor de uso e o valor de troca das coisas em geral (ao comparar um diamante, que é mercadoria, com água, que não o é), Marx vê contradição entre o valor das mercadorias postas à venda, que tendem a multiplicar-se ilimitadamente, e o valor de uso delas, restringido aos portadores de meios de compra limitadamente acessíveis.
Valor em Marx é uma relação social mediada por mercadorias, que são concretizações de trabalho social (trabalho para outrem, não para si). E a substância do valor das mercadorias é o trabalho abstrato, isto é, o trabalho social materializável em trabalho alheio em geral, nas mercadorias que podem ser obtidas em troca.
Mas a substância social do valor só se manifesta concretizada em mercadorias. E assim como os homens integrados num sistema de trocas necessárias estabelecem relações polarizadas, de um lado como vendedores das mercadorias que produzem e, de outro, como compradores das mercadorias que não produzem, as mercadorias manifestam seu conteúdo social polarizando-se como valores postos à venda, relativos a valores equivalentes expressos em meios de compra delas. Nos termos de Marx, toda mercadoria posta à venda está sob a forma valor relativa (relativa a um meio de troca aceito pelo vendedor), polarizada com a forma valor equivalente, que é a forma valor do meio de troca atraído pela mercadoria à venda.
Traduzindo para termos de uso corrente, a forma valor relativa corresponde ao lado da oferta e a forma equivalente corresponde ao lado da procura, nas relações de troca.
Embora o pensamento econômico dominante não use a figura da polarização ao abordar as trocas, o fato é que todas as mercadorias lançadas no mercado estão em oferta e, nas trocas mediadas por dinheiro, estão polarizadas como valores relativos a dinheiro, pois este é a forma necessária de manifestação da procura, o que significa que o dinheiro está polarizado como meio de troca em relação às mercadorias, que o atraem como o ímã atrai limalha de ferro.
Portanto, a manifestação material do valor se dá:
– em termos qualitativos, por um equivalente socialmente aceito como meio de troca, que pode ser uma mercadoria (nas trocas diretas) ou uma representação de mercadorias [na atualidade, essa representação é dinheiro sob a forma monetária];
– em termos quantitativos, pelo número de unidades do equivalente dado em troca, número que, como o próprio nome diz, deve equivaler ao da mercadoria [atualmente esse número é um preço, que é valor expresso em dinheiro].
Além disso, o número equivalente de unidades do meio de troca obtido na venda de qualquer mercadoria deve expressar, normalmente, o tempo de trabalho socialmente necessário gasto em sua produção.
Socialmente necessário porque deve corresponder a:
– tempo gasto com a eficiência média determinada pelos meios técnicos conhecidos;
– e tempo integrado numa divisão social do trabalho, isto é, numa alocação dos esforços produtivos que expresse a igualdade social dos homens por meio da venda das mercadorias ao valor.
Consequentemente, qualquer mercadoria, dada uma eficiência produtiva média, tende a trocar-se com as outras em valores equivalentes, sempre que produzida:
– em qualidade de valor de uso que satisfaça plenamente uma necessidade social;
– em quantidade de trabalho reconhecida nas trocas como divisão social do trabalho equitativa.
Porque a igualdade dos valores trocados reflete uma igualdade jurídica abstrata dos homens, mediada por mercadorias. O que permite que um trabalho qualquer seja desvalorizado pela perda de atrativos da mercadoria que produz; ou que um trabalho normalmente eficiente seja remunerado abaixo do valor por produzir uma mercadoria em quantidade maior do que a permitida pela divisão social do trabalho reconhecida nas trocas com as outras mercadorias.
Tal forma de quantificação do trabalho como valor não é a de A. Smith, para quem o esforço humano é simplesmente um padrão de medida de valor, ao passo que Marx entende o esforço humano empregado na produção de mercadorias como trabalho alienado (cujo produto foge ao controle do produtor na circulação mercantil), o qual, coisificado em mercadoria, é quantificado como coisa e é negado como esforço humano, ao mesmo tempo.
A. Smith, só entende o afastamento dos preços abaixo ou acima do valor (que chama de “preço natural”) como fenômeno de mercado, ou seja, só vê o epifenômeno das relações sociais que determinam o valor das mercadorias e as oscilações de preços.
1. Aplicação da teoria a um universo de duas mercadorias
20 metros de pano de linho = 1 casaco de lã. Ou, expresso algebricamente: xA = yB
Adam Smith considera somente o aspecto quantitativo dessa relação. Ao passo que Marx demonstra a contraposição de duas funções qualitativamente distintas nos dois termos da relação.
Se o pano de linho estiver polarizado como mercadoria à venda, implicitamente o casado de lã estará polarizado como meio de troca, isto é, meio de compra de “A”.
A polarização decorre dos papéis sociais opostos da mercadoria à venda e do meio de troca. Porque o produtor de “A” não apresenta sua mercadoria só como um valor, mas como um valor relativo àquilo que deseja obter em troca (no caso, “B”). Portanto, sua mercadoria está positivamente polarizada como forma valor relativa, que é valor ativo de mercadoria à venda; contraposto à mercadoria “B”, que está automaticamente colocada no papel passivo de expressar o valor à venda, logo, negativamente polarizada como forma valor equivalente.
Noutros termos, se o trabalho social concretizado na mercadoria “A” estiver polarizado como oferta, a mercadoria “B” será a materialização da necessidade social solvente (necessidade pagável em valor equivalente) da mercadoria ofertada.
Tal polarização está implícita no fato de só um dos termos (A) expressar seu valor, e não o outro (B). E é esse papel passivo da forma valor equivalente que torna possível, num universo em que o valor das mercadorias é relativo a dinheiro, que este seja representado por símbolos.
Determinação qualitativa da Forma Valor relativa
Neste universo mínimo, determinação qualitativa do valor relativo da mercadoria “A” é a definição social da mercadoria “B” como aceitável em troca, definição esta que faz de “B” um meio de expressão do valor de “A”.
O que significa que, se o pano de linho for mercadoria em oferta, estará positivamente polarizado como valor relativo ao casaco de lã, o qual estará automaticamente definido como meio de troca obrigatório para tornar solvente a necessidade social desse pano.
E assim o valor imaterial do pano linho se manifestará sob a forma material de casacos de lã;
Por outro lado, a determinação qualitativa do valor relativo de “A” confere automaticamente permutabilidade imediata a “B”.
Permutabilidade imediata é uma característica própria da forma equivalente do valor. Decorre da definição social de uma mercadoria como aceitável em troca das mercadorias postas à venda.
No exemplo, o casaco de lã está socialmente definido como imediatamente permutável (aceitável), o que lhe permite, na troca, validar o trabalho social despendido na produção de pano de linho.
Determinação quantitativa da Forma Valor relativa
Determinação quantitativa do valor relativo de uma mercadoria é a definição das quantidades trocadas. O próprio termo “equivalente” implica quantificação de valor, fato que ocorre continuamente nas trocas.
Uma vez estabelecido (na determinação qualitativa) que o valor do pano de linho é relativo a casacos de lã, as trocas regulares definirão quantos casacos equivalem normalmente ao valor de 20m de pano de linho.
No exemplo, o valor relativo de xA está quantificado em “y” unidades de “B”.
Mais precisamente, o tempo de trabalho concreto socialmente válido na produção de xA está quantificado como tempo de trabalho abstrato (trabalho alheio) pelos yB recebidos em troca.
E isso também significa que yB está determinado como valor de troca de xA.
Diferentemente de A. Smith, que só vê valor de uso e valor de troca, Marx vê nas mercadorias valor de uso e valor, distinguindo este último, que é valor enquanto trabalho social de mercadoria à venda, do valor de troca, que é o mesmo valor materializado em certa quantidade do equivalente.
Na expressão xA = yB, há o valor da quantidade “x” da mercadoria “A”, que é o tempo de trabalho social concreto de quem a produz, e há o valor de troca de xA, que é o valor materializado no trabalho alheio presente em yB, que quantifica o trabalho social válido ou “trocável” de quem produz xA. E é justamente porque o valor das mercadorias só aparece ao ser quantificado por um meio de troca, que A. Smith só viu valor materializado, isto é, valor de troca.
Em termos gerais, valor é a qualidade social de qualquer mercadoria à venda e valor de troca é o valor da mesma mercadoria quantificado pela qualidade material de outra. Ou, sucintamente, valor de troca de uma mercadoria, é o que se pode obter em troca dela; é seu valor realizado ou realizável.
Enfim, no que diz respeito às quantidades expressas, o caráter relativo do valor da mercadoria “A” (á venda) torna possível que sua expressão de valor varie independentemente do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Se, por exemplo, ocorrer uma variação de eficiência na produção de “B” (meio de compra), este passando a ser produzido mais rapidamente, a mercadoria “A”, embora com valor constante, ficará relativamente “mais cara”, por materializar seu valor em mais unidades de “B”.
Movimento das Contradições da Forma Valor simples (somente 2 mercadorias)
Contradição valor↔valor de uso: trata-se da contradição entre o interesse em produzir para obter valor e o interesse em satisfazer necessidades humanas; isso se manifesta como negação do valor de uso das mercadorias ao consumo direto, uma vez que o produto que se torna mercadoria passa a ser acessível somente mediante compra.
O movimento resultante é a expansão infinita da produção de mercadorias, uma vez que produzir para vender é necessariamente produzir mais do que o consumível pelos próprios produtores.
A produção de mercadorias é, por natureza, desmesurada e contraditória com as necessidades humanas. Seus produtores estão condenados a vendê-las ou a destruí-las.
Contradição forma valor relativa↔forma equivalente: trata-se da oposição entre os interesses dos produtores privados de “A” e “B”:
interesse na valorização máxima (entrega mínima) da mercadoria que vendem, contra interesse na valorização mínima (recebimento máximo) da mercadoria que compram.
O resultado desse conflito de interesses sob a pressão das mercadorias negadas ao consumo direto é a interdependência cada vez maior das produções “A” e “B”; o que vai desenvolver a integração social contraditória dos homens por meio das mercadorias que produzem.
Função do Equivalente simples
. Função medida de valor.
Esta é a única função expressa pelo equivalente simples; é a função criada pelos produtores de “A” ao definir “B”como meio de troca; o que dá a este permutabilidade imediata. E com isso fazem da unidade da mercadoria “B” um padrão de medida do trabalho social concretizado em “A”.
2. Universo de muitas mercadorias (com um equivalente geral)
1 casaco de lã | ||
15 quilos de chá 2 gramas de ouro 3 hectolitros de trigo | = | 20 metros de pano de linho |
Expresso algebricamente:
yB | |
zC | = xA |
D | |
wE |
As mercadorias “B”, “C”, “D” e “E” estão polarizadas positivamente como valores relativos à mercadoria “A”, que está polarizada negativamente como equivalente geral de todas as outras.
Historicamente, a definição social de um equivalente geral ocorreu em sistemas de trocas diretas entre produtores. E tal definição sempre incidiu sobre uma mercadoria de fácil produção ou obtenção nas áreas geográficas em que ocorreu. Daí a relativa abundância das mercadorias que funcionaram como equivalente geral no passado, como as cabeças de gado de áreas pastoris, as medidas de arroz de áreas agrícolas, as conchas de cauri de áreas de comércio marítimo, etc.
No exemplo hipotético acima (de Marx), a aceitação geral do pano de linho como meio de troca põe em evidência um valor de uso social, que se acrescenta a seu valor de uso natural, uma vez que a permutabilidade imediata, adquirida pelo linho socialmente definido como equivalente geral, o faz tornar-se, além de útil enquanto pano, um meio de compra geral.
E logo o valor de uso social do equivalente se torna predominante sobre seu valor de uso natural. No exemplo, o linho passa a ser produzido e guardado mais para ser usado como meio de troca do que para ser consumido. Em consequência, o linho pode ser produzido além da quantidade definida na divisão social do trabalho. Dentro de certos limites, o excesso representará riqueza social acumulada, e não tempo de trabalho desperdiçado, como aconteceria com as outras mercadorias se produzidas em excesso. E essa elasticidade particular da quantidade de trabalho socialmente válida na produção do equivalente geral é um fator de eficácia em sua função de medir o valor das demais mercadorias.
Determinação qualitativa do Valor relativo de muitas Mercadorias
O valor das mercadorias B, C, D e E está socialmente definido como relativo à mercadoria “A”, meio de troca comum a todas elas.
Noutros termos, todas as mercadorias menos uma estão polarizadas positivamente como mercadorias à venda, contrapostas ao pano de linho, que é a única mercadoria polarizada negativamente como meio de compra.
E isso também quer dizer que todas as mercadorias se apresentam como oferta, em oposição à mercadoria “A”, meio de expressão obrigatória da necessidade social das demais mercadorias, agora solvente só mediante apresentação do equivalente geral.
Por outro lado, a permutabilidade imediata conferida com exclusividade ao pano de linho faz este se evidenciar como imagem de valor.
Determinação quantitativa do Valor relativo de muitas mercadorias
O valor de todas as mercadorias é quantificado em unidades de pano de linho (A).
De modo que o tempo de trabalho concreto socialmente válido na produção de yB, zC, vD ou wE é quantificado como tempo de trabalho abstrato (de qualquer outro produtor), materializável por meio das “x” unidades de “A” obtidas nas vendas respectivas.
Entretanto, ao ser quantificado por meio de um equivalente geral, a expressão do valor adquire nova mobilidade. Porque as quantidades de trabalho abstrato que dão a medida do valor das mercadorias precisam sempre ser traduzidas em unidades de “A”; e disso resulta que, caso ocorrer um aumento de eficiência dos produtores de “A”, o valor de troca de todas as outras mercadorias receberá, ao mesmo tempo, uma expressão numérica mais alta, mesmo que o tempo de trabalho social nelas contido permaneça constante, porque o mesmo valor será logo traduzido num número maior de unidades de “A”, cuja produção se tornou mais rápida.
Movimento das Contradições da Forma Valor geral
Contradição valor↔valor de uso: acentua-se com o desenvolvimento da produção de mercadorias, que se dá em detrimento das produções consumíveis diretamente pelos próprios produtores.
A existência de um meio de compra geral facilita as trocas, o que incentiva a produção de mais mercadorias. E a maior possibilidade de obter mercadorias faz surgir o interesse em acumular valor sob a forma de equivalente geral, o que gera uma tendência à concentração de riqueza, aqui ainda confundida com a riqueza material (posse de grande quantidade de valores de uso).
Contradição forma valor relativa↔forma equivalente: esta contradição é aguçada pela variedade maior de mercadorias produzidas para troca, o que aumenta a intensidade da oposição entre ofertantes e demandantes de mercadorias diferentes.
Funções do equivalente geral
. Função medida de valor;
. Função meio de circulação.
Esta segunda função provém da aceitação geral de um equivalente único. O monopólio da polaridade negativa nas trocas, além de fazer da unidade de pano de linho um padrão de medida do trabalho social concretizado nas demais mercadorias, confere a esse pano também a função de meio geral de circulação.
A tendência social dominante num sistema de trocas diretas entre produtores é a especialização das atividades produtivas, impulsionada pela maior facilidade em vender novos produtos por meio do equivalente geral.
Por outro lado, o desenvolvimento da produção de mercadorias tende a expandir a área geográfica incluída nas relações de troca, o que implica aumento das distâncias percorridas pelas mercadorias. Isso gera a necessidade de separar a atividade de trocar da atividade de produzir, fazendo com que surjam profissionais especializados na intermediação das trocas: os mercadores.
3. Trocas por meio de dinheiro
xA | |
yB | |
zC | = vD |
wE |
As mercadorias “A”, “B”, “C” e “E” estão polarizadas positivamente como valores relativos a “D”, que está polarizado negativamente como dinheiro.
Dinheiro é um equivalente geral avançado, de grande abrangência geográfica, gerado pelo comércio de longa distância. A forma primitiva de dinheiro é a mercadoria-dinheiro, que é metal, geralmente precioso, adotado como meio de troca pelos mercadores de longa distância.
Funcionalmente, o metal-dinheiro existe apenas como mercadoria imaginária, uma vez que o mercador faz suas compras com um metal cuja permutabilidade não decorre de seu valor de uso natural, mas sim de seu valor de uso social como dinheiro.
A grande área geográfica abarcada pelo comércio de longa distância faz com que o metal-dinheiro se apresente como imagem do valor com muita força. Porque o dinheiro encarna as forças sociais desencadeadas pelo desejo de ter acesso a mercadorias de inúmeros lugares distantes, o que lhe dá um grande poder de compra de todas as mercadorias, tanto locais como vindas de longe, e, por isso, um grande poder sobre os próprios homens. Cobiça-se o dinheiro para dar solvência a uma necessidade social infinita, de mercadorias tanto existentes como imaginadas.
Nem por isso o preço do metal-dinheiro ficará permanentemente acima do valor. Produção de metal precioso não é trabalho precioso. Mas os homens tiram proveito da durabilidade física do metal-dinheiro para acumulá-lo muito mais do que o fariam com os equivalentes gerais nascidos de relações de troca menos amplas. Em consequência, dificilmente o trabalho social materializado no metal-dinheiro é desvalorizado por produção excessiva.
Entretanto, a diferença fundamental entre os equivalentes gerais de menor alcance e o dinheiro é que este último é posto em circulação por intermediários profissionais das trocas: os mercadores.
Por isso as novas relações sociais mediadas por dinheiro põem em contato no mínimo três agentes: dois produtores de mercadorias diferentes e um agente comercial. Por exemplo, nas trocas entre produtores das mercadorias “A” e “B” haverá: MA–D–MB.
O produtor de “A” vende a um mercador, que lhe pagará o dinheiro necessário à compra da mercadoria do produtor de “B”, e este último precisa vender sua própria mercadoria a algum mercador para obter o dinheiro que lhe permitirá comprar “A”.
No dizer de Marx, o processo de trocas mediado por dinheiro é um “drama com três personagens”. E isso também significa que a função meio de circulação é personificada por uma classe social.
E a corporificação do valor circulante pela classe social dos mercadores faz do dinheiro uma forma autônoma do valor. Porque o valor das mercadorias é como um espírito separável de seu substrato material. E o comércio de longa distância dá a elas uma alma nômade, que vai habitar o corpo do dinheiro.
Assim, graças aos mercadores, o valor se desprende facilmente de todos os valores de uso para colar-se ao corpo do dinheiro; e cada mercadoria circula como puro valor nas mãos de vários mercadores, embora ainda carregando consigo seu valor de uso, até separar-se dele definitivamente na última venda, quando só o valor fica nas mãos do último mercador, enquanto o valor de uso vai se dissolver nas mãos do consumidor final.
Valor expresso em dinheiro é preço. E embora valor e preço expressos em dinheiro-mercadoria estejam confundidos, pois o dinheiro é um metal com valor próprio, este define preços:
– porque a circulação liga inúmeros produtores de mercadorias diversas, os quais, salvo raras exceções, não produzem a mercadoria-dinheiro;
– porque as mercadorias circulam nas mãos de agentes profissionais de comércio, não mais sendo intercambiadas diretamente entre produtores.
Esta última condição de existência do dinheiro é a base principal de seu poder de expressar preços afastados do valor. Marx se refere à capacidade de afastamento em relação ao valor como característica imanente da forma preço. O que é historicamente confirmado pelo fato de que esta forma de valor vem naturalmente acompanhada de pechincha e de numerosas astúcias de mercador.
Mais ainda, o dinheiro pode dar preço a coisas sem valor. Porque o conteúdo social do dinheiro não é só relação de troca entre produtores, é também e principalmente relações entre mercadores, que igualizam os homens enquanto proprietários de coisas com utilidade social, independentemente de serem estas produtos do trabalho ou simplesmente produtos e recursos naturais apropriados à força.
Adam Smith e os economistas posteriores não viram que essas relações entre puros proprietários, mediadas por dinheiro, implicam a possibilidade de dar preço a coisas sem valor, mas socialmente úteis, por isso apropriadas e comerciadas. Porém a sociedade existente desde muito antes de A. Smith precisa que as relações de propriedade desligadas da produção se misturem e confundam com as relações de troca simples que determinam o valor e os preços das mercadorias criadas pelo trabalho.
E é esse conteúdo social mais amplo do dinheiro que gera a possibilidade de transformar em mercadoria o próprio homem, assim como suas ideias e sua honra.
Determinação qualitativa do Valor relativo a Dinheiro-Mercadoria
O valor de todas as mercadorias comuns está socialmente definido como relativo a dinheiro sob a forma mercadoria-dinheiro; o que significa que todas estão positivamente polarizadas em oposição a dinheiro; ou seja, todas constituem oferta contraposta à necessidade social solvente expressa em dinheiro, o meio de troca universal.
O dinheiro, pela amplitude da área que une numa rede de trocas e pela circulação mediada por uma classe social de não-produtores, aparece como uma definição externa à vida social dos produtores, o que confere a ele permutabilidade absoluta.
É essa vida exterior à produção que faz o metal-dinheiro parecer uma pura imagem de valor, que se apresenta como um poder social saído diretamente das entranhas da terra.
Determinação quantitativa do Valor relativo a Dinheiro-Mercadoria
O valor das mercadorias é expresso em quantidades definidas de metal-dinheiro.
Mais exatamente, o tempo de trabalho concreto socialmente válido na produção de xA, yB, zC ou wE é quantificado como tempo de trabalho abstrato (alheio em geral), materializável por meio da massa “v” do metal-dinheiro “D”, obtida nas vendas respectivas.
Aqui o valor de troca das mercadorias se manifesta numa quantidade de dinheiro, isto é, sob a forma preço. E, sendo preço, o valor de troca pode não ser igual ao valor. Porque a mobilidade que já caracteriza a quantificação do valor por meio do equivalente geral dos produtores, é aqui acrescida da infidelidade trazida pela intermediação do mercador. Porque quando ocorre variação de produtividade do metal-dinheiro, há dificuldade geral de avaliação do novo tempo de trabalho abstrato representado por esse metal, que a grande maioria não produz. E o mercador, nas trocas ocasionais, não deixa de se aproveitar da ignorância alheia.
Mas isso não distorce permanentemente os preços de todas as mercadorias, porque, ao longo do tempo, as distorções da expressão do valor em dinheiro tendem a ser corrigidas pela pressão dos produtores no sentido da remuneração igual dos respectivos tempos de trabalho social; e essa pressão força continuamente os preços a se ajustarem ao conteúdo material das trocas, que é a troca das mercadorias entre si. Razão pela qual a infidelidade do dinheiro nem sequer dificulta as trocas, pelo contrário, introduz nelas emoção e arte.
Ao mesmo tempo, porém, a intermediação das trocas por profissionais dá às mercadorias uma extraordinária sensibilidade à variação das condições de sua venda ao valor. E sempre podem acontecer mudanças dessas condições à revelia de cada produtor individual, por mais eficiente que seja, quer quanto ao valor de uso adequado a uma necessidade social, quer quanto ao volume de produção reconhecido na divisão social do trabalho mediada pelas trocas.
Assim, pode acontecer que uma mercadoria que hoje satisfaz sozinha uma necessidade social seja amanhã substituível por outra. Neste caso, o lugar social do trabalho que produz a mercadoria substituível diminuirá, o que será expresso por um preço abaixo do valor, até este trabalho concreto adequar-se à necessidade social menor.
E, pode acontecer que, mesmo subsistindo integralmente a utilidade social de uma mercadoria, haja uma afluência excessiva de homens a produzi-la. Neste caso, ainda que os produtores recém-chegados trabalhem com eficiência máxima, o “estômago do mercado” (expressão de Marx, que indica a necessidade social solvente ao valor, distinta da “procura”, que é solvente a qualquer preço) não absorverá toda a produção ao preço normal. E todos os produtores dessa mercadoria, os eficientes e ineficientes, receberão dos agentes de comércio a punição, expressa no preço abaixo do valor, pelo esforço humano desperdiçado.
Os dois casos acima aparecem superficialmente como oscilações de mercado. O primeiro caso, em que certa produção perde lugar na divisão social do trabalho reconhecida nas trocas, aparece como procura declinante; e o segundo caso, em que produtores demais competem entre si, aparece como excesso de oferta. E os dois casos de queda de preço são explicados pelo saber econômico superficial como queda marginal de certa “utilidade” das coisas (sempre confundidas com as mercadorias, pois o exemplo recorrente é a água), assim ficando a relação entre necessidades humanas e trabalho social reduzida a uma relação entre as coisas úteis em geral e o dinheiro, mera coisa a mais com “utilidade” variável. É uma redução interessada, que transforma relações sociais entre homens em puras relações quantitativas entre coisas.
Movimento das Contradições do Dinheiro-Mercadoria
Contradição valor↔valor de uso: a negação do valor de uso das mercadorias se torna mais forte, porque se pode acumular dinheiro por longo tempo em quantidades teoricamente infinitas, o que passa a ser um desejo comum entre os homens. E a consequente expansão da produção de mercadorias comprime a produção dos meios de subsistência não polarizáveis com o dinheiro, o que torna possível a carência de meios de subsistência junto à abundância de mercadorias.
Contradição forma valor relativa↔forma equivalente: esta contradição, que num universo sem dinheiro se manifesta como oposição direta entre produtores de mercadorias distintas, manifesta-se agora como oposição indireta, mediada por mercadores. Isso dissolve a oposição entre os produtores de mercadorias diferentes (na realidade, transfere essa oposição ao mercador), ao mesmo tempo em que transforma a oposição entre produtores de mercadorias de mesmo tipo em concorrência.
Por outro lado, a intermediação das trocas por mercadores desdobra esta contradição, dando origem a outra, que contrapõe oferta de comércio, que é a massa de valor-mercadoria nas mãos de mercadores em busca de lucro, à necessidade social solvente, que é a massa de valor-dinheiro nas mãos dos que precisam consumir mercadorias.
Funções do Dinheiro-Mercadoria
. Função medida de valor;
. Função meio de circulação;
. Função reserva de valor (entesouramento).
A função medida de valor é exercida por quantidades determinadas de metal-dinheiro, que servem de padrão de medida do trabalho social concretizado nas mercadorias do grande comércio.
No exemplo aqui usado, a massa de metal vD funciona como padrão de medida do valor das demais mercadorias. Entretanto, por ser um equivalente geral criado no comércio de longa distância, o dinheiro traz consigo a infidelidade própria da intermediação das trocas por mercadores. Mas aqui se trata da infidelidade acidental, proveniente das oscilações inerentes à quantificação de trabalho abstrato sob a forma preço, e não do exercício de preços de monopólio.
A função meio de circulação é exercida por massas de metal-dinheiro que funcionam como meras unidades de conta, para viabilizar a realização do conteúdo real das trocas, que é o intercâmbio das mercadorias entre si.
E a função reserva de valor em dinheiro imobilizado traz consigo um fator adicional de distorção da função medida de valor: porque todo entesouramento implica venda sem compra (para entesourar o resultado da venda); consequentemente, parte das mercadorias produzidas representará tempo trabalho social inútil, ao não serem compradas, e, inversamente, representará tempo de trabalho social insuficiente em relação ao estômago do mercado expandido pelo desentesouramento. Em ambos casos há perturbação da circulação e consequente afastamento de preços em relação ao valor.
Tendências sociais impulsionadas pelo Dinheiro-Mercadoria
. Uma tendência inerente à intermediação das trocas por dinheiro é a atração entre comércio de longa distância e poder político, em função da necessidade de segurança e do interesse no uso monopolista das grandes rotas comerciais, necessidade e interesse que dão origem à profissão de mercador/guerreiro e mais tarde ao comércio protegido por Estados guerreiros.
. Ao mesmo tempo, o avanço das forças produtivas (novos conhecimentos e técnicas), que tende a acompanhar o aumento da produção de mercadorias impelido pela expansão mercantil, termina por abrir caminho à exploração proveitosa do trabalho de prisioneiros de guerra. Isso dá origem ao tráfico de escravos, que tende a se tornar um item importante do grande comércio.
E a possibilidade de produzir mercadorias por meio do trabalho escravo (ou de povos dominados) desencadeia o interesse em apropriar-se de recursos naturais (pastagens, aguadas, florestas) pelos que podem dispor de trabalho compulsório, isto é, chefes guerreiros e religiosos, mercadores. Assim a posse de escravos faz nascer um conflito pelo uso dos recursos naturais, cujo desfecho favorável ao poder mercantil leva à anulação do livre acesso a esses recursos e ao lançamento de tributos sobre seu uso.
Desse modo a exploração do homem pelo homem leva à cisão da sociedade em classes sociais. Pois a posse de escravos e a apropriação exclusiva de recursos naturais por uma minoria termina por definir uma camada social superior de caráter guerreiro/mercantil e/ou religioso, que vai fazendo a maioria do povo descobrir que é “gente comum”.
A sociedade de classes assim surgida passa a ser movida pela contradição entre produtores indiretos (que produzem mercadorias com mãos alheias) e produtores diretos (que produzem mercadorias com as próprias mãos), livres e não-livres.
. Na sociedade mercantil que nasce dessas relações, a acumulação de riqueza é determinada pelo poder político capaz de controlar rotas comerciais e tráfico de escravos. Estados com intensa atividade mercantil tendem a se tornar plutocracias de mercadores.
Porque, nos modos de produção em que o valor se manifesta sob a forma dinheiro-mercadoria, o poder mercantil emana da força, portanto, do poder político.
E a tendência geral impulsionada pelo Estado mercantil expansionista é o desenvolvimento das relações escravistas e servis em geral.
4. Do dinheiro à moeda
Moeda, no sentido original, é peça de metal (ou de liga de metais) com gravações que definem a massa de metal presente nas unidades monetárias. O termo vem do apelido popular latino (moneta), derivado do templo (de Juno Moneta) onde eram cunhadas as moedas na Roma antiga.
Embora a transformação do metal-dinheiro em moeda seja hoje vista como atribuição característica do Estado, na realidade ela é criação original da sociedade, e não do Estado. Historicamente, é a expansão das trocas que leva a sociedade a aceitar os nomes das unidades de massa inscritos sobre as peças de metal-dinheiro sem pesá-las. Estas tendem a circular cada vez mais como nomes de valor, pelo simples fato de que a rápida sucessão de trocas nos grandes mercados torna impossível a pesagem de cada peça de dinheiro a cada troca.
A aceitação crescente dos nomes de valor das moedas é uma tendência que decorre naturalmente da ampliação das trocas e da consequente evolução da mercadoria-dinheiro, que assim expressa seu desenvolvimento como valor de uso social, isto é, como imagem do valor das mercadorias, não mais idêntica a sua existência material.
Esse fenômeno social põe a nu o fato de que a moeda quantifica o valor das mercadorias em metal ideal. Tendo-se em mente o fenômeno da autonomia do valor das mercadorias sob a forma dinheiro, fica fácil entender por que o dinheiro circula como metal imaginário, visto que, na troca de qualquer mercadoria por dinheiro, a função deste é unicamente levar às mãos do vendedor o valor da mercadoria vendida. Se originalmente a matéria do dinheiro precisa estar integralmente presente é unicamente para garantir o valor recebido; mas à medida que a circulação de nomes de valor definidos pelo costume vai se tornando mais intensa, vai perdendo importância a presença integral do metal físico.
Uma vez inventada a moeda pelo povo, entra em cena o Estado, que tradicionalmente se arroga o poder de juiz de querelas sobre pesos e medidas, e que dele faz derivar o direito de definir e cunhar as massas de metal que já circulam como nomes monetários. E após períodos variáveis, dependentes da resistência social à imposição da moeda estatal e do grau de centralização alcançado pelo aparelho de Estado, termina por firmar-se o preconceito de que cabe exclusivamente ao Estado a função de definir e cunhar a moeda legal de todo o país (poder de seigneuriage, às vezes traduzido como “senhoriagem”).
A entrada do Estado na determinação do dinheiro, com a intenção manifesta (raramente cumprida) de garantir a uniformidade de conteúdo metálico das peças cunhadas, marca o início da interferência estatal no curso do dinheiro e nas relações de troca. Tal interferência, por ser externa ao movimento das trocas, isto é, determinada na esfera da política, torna a moeda menos estável do que quando determinada exclusivamente pelo costume das trocas.
Mas nas relações sociais que caracterizam o dinheiro sob a forma moeda metálica, o Estado, por mais que se arrogue liberdades na definição da massa metálica representada pelos nomes monetários oficiais de seu território, tem pouco poder de interferência no comércio de longa distância, cujas atividades fogem ao controle local.
Entretanto, a simples definição legal de peças padronizadas de um metal socialmente aceito como dinheiro acrescenta a qualidade política própria do Estado à qualidade social do metal cunhado. Porque, como o Estado monopoliza o poder de justiça, que garante o cumprimento dos contratos, o mero nome oficial de uma quantidade de metal-dinheiro inscrito sobre as moedas, passa a ter o poder de quitar dívidas, tanto quanto o próprio metal físico.
Por isso a transformação de unidades de massa do metal-dinheiro consagradas pelo costume em moeda metálica emitida pelo Estado, dá origem a uma contradição entre o interesse político que determina a quantidade de metal contido na moeda oficial e os interesses sociais que determinam o conteúdo material das trocas.
Consequentemente, a afirmação do monopólio de Estado na cunhagem de moeda gera pelo menos dois desdobramentos políticos nas relações de valor:
– o primeiro deles é que, por circular como nome do valor das mercadorias em moeda estatal, e não como mera massa de metal-dinheiro, a confiança no Estado passa a ser um componente da aceitação da moeda pelo povo;
– o segundo é que, ao definir a massa de metal físico que serve de padrão aos nomes dos valores das mercadorias, o Estado adquire um poder de intervenção na vida econômica, que é particularmente efetivo nas relações entre credores e devedores.
A interferência do Estado na determinação da forma monetária metálica fez-se sentir historicamente na tendência endêmica à “mutação” da moeda, isto é, à alteração do conteúdo metálico da moeda oficial, que no passado movia bruscamente os preços das mercadorias, independentemente da variação do valor destas ou do valor do metal monetário.
As mutações monetárias por razões de Estado, que aparecem com a moeda metálica, perturbam fortemente as relações econômicas. A cunhagem de mais moedas com menor conteúdo metálico, mas de mesmo nome, diminui seu poder aquisitivo e, com ele, as dívidas, que continuam expressas nos mesmos nomes monetários oficiais. Isso não muda os preços relativos das mercadorias, pois todos os nomes de valor (preços) aumentam ao mesmo tempo. O que muda é o montante real das dívidas em moeda mutada, em prejuízo dos credores.
Determinação qualitativa do Valor relativo a Moeda metálica
É a definição social de metal monetizado como meio de troca de todas as mercadorias. Estas ficam assim polarizadas como mercadorias à venda por dinheiro sob a forma moeda metálica. Noutros termos, constituem oferta contraposta à necessidade social solvente em dinheiro monetizado.
Mas a moeda metálica não extingue a definição social do puro metal monetário físico, que continua sendo visto como expressão “natural” do valor das mercadorias. Por isso, embora as moedas metálicas circulem apenas como nomes de valor, o metal precioso permanece presente na imaginação das mercadorias.
Determinação quantitativa do Valor relativo a Moeda metálica
O valor das mercadorias é quantificado em unidades monetárias, não necessariamente correspondentes a quantidades exatas de metal. E as moedas que, com o manuseio, perdem metal em grau muito variado, continuam expressando os mesmos valores das mercadorias, tanto as moedas novas como as desgastadas.
O que significa que o tempo de trabalho concreto socialmente válido das mercadorias à venda é quantificado como tempo de trabalho abstrato, materializável por meio de unidades monetárias representativas de metal-dinheiro ideal.
Movimento das Contradições da Moeda metálica
Contradição valor↔valor de uso: desenvolve-se juntamente com a sociedade de classes e a consolidação de um aparelho estatal repressor, o que implica negação do consumo de muitos valores de uso veiculados como mercadorias para a maioria dominada.
O lugar do Estado aqui é uma derivação da contradição entre produtores de mercadorias diretos e indiretos, isto é, entre os que produzem com os próprios braços e os que comandam produção por meio de braços alheios. Porque a função básica do Estado na sociedade de classes é defender as relações de dominação social. E, no quadro das relações de dominação dos produtores indiretos e dos mercadores sobre os produtores diretos servis e não-servis, o desenvolvimento do aparelho de Estado expressa o aguçamento das contradições entre o estrato social dominante e a massa dominada.
Contradição forma valor relativa↔forma equivalente: acentua-se com o controle crescente dos mercadores sobre a circulação de mercadorias, em associação com uma aristocracia guerreira ou diretamente.
Esse controle se desenvolve como monopólio mercantil, que termina por transformar-se em forma permanente de transferência de valor dos produtores em geral para os mercadores.
Funções da Moeda metálica
. Função medida de valor.
Esta função tem seu conteúdo social desdobrado em:
– conteúdo nominal (ou existência funcional), que é o preço atribuído pela moeda às mercadorias;
– e conteúdo real (ou existência metálica), que é o poder aquisitivo da massa de metal físico que a moeda define.
. Função meio de circulação.
É a função realizada pela moeda enquanto unidade de conta.
Está ligada à existência funcional da moeda, enquanto forma de existência distinta e autônoma da moeda. Esta autonomia a põe em contradição com a função medida de valor, que é negada quando mutações da moeda desvalorizam ou valorizam dívidas.
. Função reserva de valor (entesouramento).
O desenvolvimento das trocas que dá origem à forma monetária do valor faz desta função uma condição de produção, porque a exploração lucrativa do trabalho compulsório exige prévia acumulação de riqueza.
E nesta função expandida, a contradição entre conteúdo nominal e conteúdo real da moeda se manifesta como entesouramento preferencial de barras de metal ou de moedas não-desgastadas.
Tendências sociais impulsionadas pela Moeda metálica
. Numa sociedade cuja prosperidade se baseia no comércio de longa distância, a relação entre o poder de Estado e o poder mercantil muda de sentido. O desenvolvimento do comércio de longa distância tende a subordinar todas as relações sociais a esse comércio. E tal tendência termina por colocar o poder de Estado na dependência das fontes de riqueza trazidas pelo comércio, para sobreviver sob a pressão de outras potências mercantis.
. Por outro lado, como os preços das mercadorias produzidas por trabalho compulsório tendem a se manter abaixo do valor, uma vez que trabalhadores servis não participam da divisão social do trabalho em condições equitativas, o controle da circulação desse tipo de mercadoria coloca os mercadores em posição de apropriar-se da maior parte do sobrevalor assim obtido.
. Um efeito paralelo dessas relações é a expansão da usura, que é uma manifestação particularmente opressiva da relação credor↔devedor, porque carrega consigo o conteúdo social das relações de exploração do trabalho compulsório. A usura simplesmente estende tais relações de opressão para outras relações sociais mediadas pelo dinheiro, ao se tornar um instrumento de sujeição dos camponeses e artesãos devedores aos mercadores e aos poderosos.
. O conjunto desses fenômenos gera uma tendência “natural” à acumulação do valor sob a forma dinheiro nas mãos dos mercadores e do poder político associado ao comércio de longa distância.
A tendência geral das relações sociais constitutivas da forma moeda metálica, é a ampliação e diversificação do trabalho compulsório, que vem normalmente acompanhada pela expansão de uma vasta área de miséria e pobreza, a sobreviver em graus diversos de ilegalidade à margem da sociedade mercantil.
5. Da moeda metálica à moeda-papel
Moeda-papel é símbolo de valor impresso em notas de papel, conversível em quantidades de metal precioso definidas por um padrão de preço, que é a massa física de metal cujo valor deve corresponder oficialmente ao da unidade monetária emitida pelo Estado.
A conversibilidade da moeda-papel exige um lastro monetário, que é uma reserva de metal precioso mantida pelo Estado, porque a aceitação da moeda-papel pelo público está, em princípio, condicionada ao direito de receber o metal em troca das notas a qualquer momento.
Mas apesar da obrigação legal do Estado de entregar o metal físico em troca de suas notas quando solicitado, Marx trata a moeda-papel como moeda fiduciária, “de curso forçado”, porque a lei obriga a aceitar pagamentos e liquidações de dívidas em moeda-papel.
Em termos gerais, o interesse em usar metal precioso nas transações comuns tende naturalmente a diminuir, pois os símbolos de valor bastam, enquanto forem aceitos pela sociedade, para levar o valor integral das mercadorias às mãos de seus vendedores; e o metal precioso físico passa a ser preferencialmente entesourado.
Porém a moeda-papel não elimina completamente a moeda metálica e, inicialmente, as notas são reservadas aos nomes de valor maiores (mínimo de 5 libras na Inglaterra do século XIX). As duas formas de moeda circulam simultaneamente (às vezes com ocorrência de ágio na passagem de uma para outra).
Sob a forma moeda-papel, a cisão do dinheiro em conteúdo funcional, que circula como metal imaginário por meio de símbolos, e conteúdo real, garantido pelo lastro metálico que não circula, fica absolutamente evidente. E assim o caráter imaginário do metal-dinheiro se torna palpável no papel que expressa o valor das mercadorias.
As forças sociais que impulsionam e sustentam a moeda-papel são próprias do modo de produção capitalista ou capitalismo industrial, que se caracteriza por:
– criação de um mercado de mão de obra assalariada;
– produção fabril por meio de máquinas.
Diferentemente do capital mercantil, cujo conteúdo consiste em relações de trabalho compulsórias, o conteúdo social do capital industrial consiste em relações de assalariamento tornadas altamente produtivas com o uso de máquinas. O que significa que o capital industrial traz consigo o poder de expansão da força produtiva do trabalho maquinizado que ele submete. E a moeda-papel se expande junto com o capital, tendendo a ocupar um espaço relativo cada vez maior na circulação, à medida que se desenvolve a produção capitalista.
Além disso, Marx distingue moeda-papel “no sentido próprio do termo”, criada diretamente nas relações de troca, de moeda-papel no sentido de moeda de crédito, criada pela relação credor↔devedor. Esses sentidos distintos correspondem às duas relações sociais mediadas pela moeda-papel (relação de troca e relação de produção), decorrentes de suas origens, que são:
a) Origem a partir da circulação (origem comercial): Assim como o nome de valor inscrito sobre moedas metálicas pode valer por metal parcialmente inexistente nas moedas desgastadas, um nome de valor inscrito sobre papel pode valer por metal totalmente inexistente, quando o desenvolvimento das trocas o exige. Essa propriedade da moeda tornou possível a criação da letra de câmbio medieval, que evitava transferências desnecessárias de metal precioso entre cidades com relações comerciais intensas, só sendo transferido o saldo, quando um desequilíbrio comercial persistia. E, mais tarde, essa propriedade deu origem a notas de banco que circulavam representando depósitos metálicos.
b) Origem a partir do crédito (origem bancária): O crédito capitalista gera títulos que circulam com a função de meio de pagamento. E sobre esses títulos os bancos emitem notas para descontá-los, que não representam valor realizado de mercadorias, mas sim valor a realizar de mercadorias à venda ou em processo de produção. Tais notas constituem moeda de crédito, criada para sustentar o crédito necessário ao capital comercial e industrial.
E os dois conteúdos geram duas circulações integradas e contraditórias de moeda-papel:
– circulação de dinheiro (sob a forma de moeda metálica e moeda-papel);
– circulação de capital (sob a forma de títulos de crédito).
Esta última circulação tende a predominar sobre a primeira, porque, como toda transformação de dinheiro em capital gera meios de pagamento, o desenvolvimento capitalista tende naturalmente a expandir a circulação da moeda que faz circular esses meios, isto é, a moeda de crédito, que passa a constituir uma parte cada vez maior da moeda-papel circulante. Mas além de se tornar predominante, a circulação de capital se expande em contradição com a circulação de dinheiro, e tende a restringir esta cada vez mais.
Por outro lado, assim como a invenção da moeda pelo povo foi seguida pela invenção do poder de seigneuriage pelo Estado, a emissão de moeda-papel por bancos privados para desconto de títulos de crédito é rapidamente seguida pela emissão de moeda de crédito oficial pelo Estado. Este intervém normalmente por meio de um banco oficial (não necessariamente estatal), cuja função básica é fazer o último desconto (redesconto) dos títulos de crédito postos em circulação pelos capitalistas. Esta nova entrada em cena do Estado na determinação do dinheiro acrescenta o poder estatal à força expansiva do capital, o que dá à moeda de crédito uma capacidade de expansão ampliada sob a forma de moeda-papel oficial.
Tal forma de expansão da moeda de crédito corresponde a uma ampliação do poder de intervenção do Estado na vida material do povo por meio da moeda. Porque a emissão de moeda de crédito implica a administração de uma taxa de juro (a taxa de redesconto), que regula as taxas de juro privadas e, através delas, influi nos preços das mercadorias, além de arbitrar entre interesses de credores e devedores.
Esse poder é normalmente usado em benefício de interesses parciais, encobertos pela representatividade geral de que se reveste o Estado. E o fato novo, de grande importância social, é que a gestão da moeda-papel é pouco visível para o povo. Pois enquanto que, sob a forma metálica, as manipulações monetárias são diretamente constatáveis e mensuráveis, sob a forma simbólica essas manipulações são invisíveis e difíceis de medir, a não ser indiretamente por seus efeitos sobre os preços, que não refletem apenas fatos monetários. E o povo, mal instruído por especialistas interessados, termina por confundir o poder de seigneuriage com uma espécie de poder mágico de criar valor a partir do nada. Na realidade, a única coisa que a intervenção do Estado na gestão monetária faz é transferir direitos sobre valor real, gerado pelo trabalho, de um grupo social para outro.
Determinação qualitativa do Valor relativo a Moeda-Papel
É a definição social da moeda-papel representativa de metal precioso como meio de troca.
Não é uma definição exclusiva, pois a moeda-papel não elimina completamente a moeda metálica. Mas predominam os símbolos para expressar o valor das mercadorias em circulação, porque o desenvolvimento capitalista tende a diminuir a funcionalidade monetária do metal físico.
Em termos gerais, porém, a oferta de mercadorias está contraposta à necessidade social solvente em moeda metálica e moeda-papel.
Determinação quantitativa do Valor relativo a Moeda-Papel
O valor das mercadorias é quantificado em unidades monetárias expressas em moeda metálica ou em símbolos inscritos sobre moeda-papel conversível em metal. E os símbolos estão relacionados com a massa física definida como padrão de preço, que permite medir o valor relativo das mercadorias em unidades teóricas de metal precioso.
Mais precisamente, o tempo de trabalho concreto socialmente válido das mercadorias à venda é quantificado como tempo de trabalho abstrato, materializável por meio de unidades monetárias em metal ou notas representativas de metal precioso ideal.
Movimento das Contradições da Moeda-Papel
Contradição valor↔valor de uso: o capitalismo industrial tende a estender o consumo de mercadorias a toda a população, porém não há tendência capitalista espontânea à diminuição das desigualdades de riqueza. E inevitavelmente, à medida que vão desaparecendo as produções de subsistência autônoma, vai sendo negado o acesso ao consumo de muitas mercadorias a grande parte da população.
Contradição forma valor relativa↔forma equivalente: a produção em massa propiciada pela indústria capitalista diminui o poder dos agentes da circulação, que perdem capacidade de controle sobre a qualidade dos produtos e, principalmente, sobre o volume da oferta de mercadorias aos consumidores finais. E assim os capitalistas industriais sucedem os antigos mercadores no controle da circulação de mercadorias.
Com isso, a contradição entre oferta de comércio e necessidade social solvente passa a manifestar-se como contraposição direta entre oferta de grande indústria e necessidade social solvente fragmentada entre milhões de consumidores individuais, cujos gostos os agentes comerciais se dedicam a excitar e os industriais a inventar.
E o efeito mais visível dessa contradição entre oferta capitalista de massa e necessidade social solvente de consumidores fragmentados, se manifesta no desenvolvimento extraordinário da publicidade, típica do capitalismo, que tende a evoluir no sentido da massificação dos hábitos de consumo, induzida pela publicidade onipresente.
Funções da Moeda-Papel
. Função medida de valor.
Esta função se desdobra, dando origem à função padrão de preço. Trata-se da função cumprida pela massa de metal monetário físico que define o poder aquisitivo da unidade monetária oficial de um país.
Tal desdobramento separa a função de medir o valor das mercadorias em unidades de metal precioso imaginário (os nomes de valor inscritos sobre moeda metálica e moeda-papel) da função de comparar esses nomes de valor com o valor da mercadoria-dinheiro (a unidade física de metal precioso, ou padrão de preço, que define o poder de compra da moeda) e corresponde à mesma separação entre existência funcional e existência metálica, que já ocorre na moeda metálica. Porém na moeda-papel a existência funcional absorve totalmente a existência metálica, pois a nota de papel incorpora todo o poder de compra do ouro.
Por outro lado, a produção maquinizada, que requer grandes investimentos e submete a força de trabalho ao capital, faz com que os preços das mercadorias fiquem submetidos à taxa de lucro aceitável para o investimento. Este comando dos preços pela taxa de lucro do capital transforma o valor das mercadorias em preços de produção. E diferentemente das relações sociais estabelecidas na circulação, que afastam acidentalmente os preços do valor, os preços de produção geram afastamentos necessários em relação ao valor, na medida em que decorrem da necessidade de lucro do investimento capitalista.
. Função meio de circulação.
Esta função é facilitada pela emissão de moeda-papel, mas principalmente pela emissão de moeda de crédito, que põe em movimento a produção e circulação capitalista. Entretanto, a pressão do capital por mais crédito e, portanto, por maior emissão de moeda de crédito, é contraditória com a função medida de valor, porque tende a depreciar a moeda-papel em relação à moeda metálica.
. Função reserva de valor.
Esta função dá um salto qualitativo, com a transformação do entesouramento tradicional de metal precioso em poupança, depositada no sistema bancário capitalista, o qual atrai os entesouradores com o pagamento de juros por seus depósitos; sendo que a iniciativa dos bancos é logo ampliada pelo aparecimento de títulos estatais remunerados, que permitem aos bancos transferir ao Estado parte da responsabilidade de remunerar os depósitos de poupança. E com isso os bancos distribuem entre todos os que pagam tributos, poupadores ou não, o ônus do pagamento de juros aos poupadores.
O efeito imediato mais importante disso é a inversão do sentido circulatório do entesouramento. Este, em sua forma física tradicional, interrompe a circulação, ao passo que a poupança não apenas não interrompe como amplia a circulação, ao incluir-se no capital bancário multiplicável em muitos empréstimos simultâneos do mesmo dinheiro.
Além disso, tal inversão significa a eliminação da reserva de valor real e sua substituição por puros direitos sobre a riqueza social no momento do saque da poupança. Porém tais direitos não são definidos simplesmente pelo dinheiro poupado, mas sim pelo volume de dinheiro transformado em capital bancário, que cresce automaticamente por acumulação de juros compostos, desconectado da geração de riqueza real pelo capital operante na produção e circulação de mercadorias.
E o resultado dessa desconexão é o surgimento de nova contradição entre os direitos dos poupadores sobre a riqueza social e a capacidade real de criação de riqueza pela sociedade.
Tendências sociais impulsionadas pela Moeda-Papel
. A contradição entre vendedores de força de trabalho e capitalistas passa a ocupar um lugar central na sociedade, antes ocupado pela contradição entre os trabalhadores dependentes e seus senhores. Num dos polos dessa contradição, o capital operante na indústria e no comércio tende a incorpora-se cada vez mais ao capital bancário, em função do desenvolvimento do crédito. No outro polo, a massa assalariada que produz mercadorias, deixa de ter a uniformidade da época pré-capitalista e se diversifica extremamente, apresentando desde relações empregatícias privilegiadas até relações semi-servis e servis.
. A contradição entre credores e devedores transforma-se, adaptando-se às relações de produção capitalistas. O antigo capital usurário pré-capitalista, cujo conteúdo social era a relação servil, é substituído pelo capital bancário, cujos direitos de remuneração estão fundados na relação de produção capitalista, constituída pelo sistema de assalariamento. Tal substituição, por um lado, atenua a contradição credor↔devedor e, por outro, tende a expandi-la ao infinito, tanto em função da necessidade de crédito para o desenvolvimento capitalista, quanto em função do crédito ao consumo individual, que o capital busca ampliar ao máximo.
. A tendência à aproximação entre o capital operante (industrial e comercial) e o capital portador de juro (bancário) impulsiona a concentração e centralização do capital operante, dando origem ao capital monopolista, ao mesmo tempo em que tende a eliminar a distinção entre o direito de apropriação do valor criado no processo de trabalho, específico do capital operante, e o direito abstrato de propriedade sobre a produção social, próprio do capital monetário (concentrado nos bancos). E isso significa que o capital bancário e o capital industrial e comercial tendem a fundir-se numa força social unificada para apropriar-se do valor criado pelo trabalho.
. Paralelamente, as relações que a moeda de crédito oficial cria entre o capital e o Estado tendem a desenvolver uma dívida estatal, dita “dívida pública”, porque o público é intitulado devedor dela e deve pagá-la com suas contribuições tributárias. Mas as instituições capitalistas, que são as principais detentoras de títulos do Estado, além de ganhar com a intermediação desses títulos, também se beneficiam do fato de que tanto detentores como não-detentores de títulos pagam com seus tributos os juros dessa dívida, sendo que normalmente é a massa dos que menos têm que mais paga.
Em termos gerais, o efeito da dívida estatal é desonerar parcialmente os bancos da responsabilidade de remunerar a reserva de valor neles depositada e, com isso, não só transfere rendimentos dos pagadores de tributos para o capital portador de juro e dos não-poupadores para os poupadores, como ainda encadeia os direitos dos poupadores à dívida estatal.
Desse modo o capital portador de juro, além de se tornar um agente de concentração e centralização do capital operante em âmbito mundial, desenvolve a característica não menos importante de parasitar o público em geral através do crédito improdutivo ao Estado.
A tendência de conjunto é determinada pela expansão do capital, ampliada pela transformação do entesouramento metálico em poupança capitalista, que implica a transformação dos poupadores em credores abstratos da sociedade, integrados no mecanismo financeiro do capital portador de juro e da dívida estatal. Tal mecanismo tende a desenvolver o capital portador de juro ao infinito, transformando parte sempre maior do dinheiro dos poupadores em capital fictício. E essa expansão do capital fictício termina por levar a moeda-papel lastreada em metal precioso à catástrofe.
6. Da moeda-papel ao papel-moeda
Papel-moeda é simples símbolo do valor das mercadorias, sem padrão de preço, isto é, sem relação legal com metal precioso polarizado negativamente na função de equivalente. O ouro imaginário abandona finalmente a imaginação das mercadorias.
Esta forma de dinheiro é plenamente moeda fiduciária (do latim: fiducia = confiança), portanto, teoricamente dependente da confiança do povo na moeda emitida pelo Estado. Na realidade, o papel-moeda, mais que todas as outras formas de dinheiro é moeda de curso forçado; e mais que todas as outras introduz diferenças entre as classes sociais, quanto às possibilidades de defesa contra as manipulações monetárias abusivas do Estado. Os capitalistas e os ricos em geral dispõem de variados meios defesa contra desvalorizações rápidas da moeda, ao passo que os trabalhadores diretos e os pobres em geral precisam despender grande esforço organizativo para travar as difíceis lutas sociais necessárias à defesa do poder aquisitivo de seus salários.
E o conteúdo arbitrário desta forma de dinheiro é visível nos nomes de fantasia do papel-moeda, inventados pelos governantes de muitos países, assim como pela facilidade com que esses nomes podem mudar.
Diferentemente das formas precedentes de dinheiro, que são desdobramentos espontâneos da expansão das trocas, o papel-moeda nasce bruscamente do desmoronamento da moeda-papel lastreada em ouro, no momento em que o Estado se vê forçado a abandonar formalmente o compromisso de responder com ouro real por suas emissões de papel representativo de mercadorias fantasmagóricas.
Essa catástrofe final já estava inscrita no ato de nascimento da moeda-papel lastreada, devido ao potencial explosivo da mistura de moeda-papel em sentido próprio (símbolo de valor-mercadoria) com moeda de crédito (símbolo de valor-capital). Pois esta última se expande com o ímpeto do capital, que acumula direitos sobre produção real, mas também acumula direitos sobre produção não realizada, e que ainda mais se amplia por meio da acumulação de capital portador de juro decorrente da transformação do entesouramento em poupança remunerada. E todo esse capital cresce como moeda contábil nos bancos, independentemente de crescimento equivalente da produção de mercadorias, acumulando direitos de consumo irrealizáveis.
Por outro lado, a transformação da moeda-papel conversível em papel-moeda inconversível amplia enormemente o poder estatal de transferir riqueza social por meio de manipulação da moeda. E os interesses dominantes nessas transferências de riqueza, entrelaçados com o antagonismo natural do Estado com a população explorável, transformam a falsificação da moeda, isto é, a criação de valor fictício lastreado numa dívida estatal, em forma normal de política monetária.
Determinação quantitativa do valor relativo a Papel-Moeda
É a definição social do valor das mercadorias como relativo a puros símbolos. De modo que as mercadorias à venda estão polarizadas contra meios de troca que não são mais que simples unidades de conta. Ou seja, a oferta de mercadorias se contrapõe à necessidade social solvente em puros símbolos de valor.
O surgimento do papel-moeda leva às últimas consequências a contradição entre a existência metálica e a existência funcional da moeda, com a completa abolição da definição social do metal precioso como expressão válida do valor de troca das mercadorias.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da circulação de capital, que se contrapõe à circulação de dinheiro, diminui gradualmente o uso do papel-moeda. Em consequência, até a circulação dos salários de trabalhadores, domínio tradicional da moeda manual, tende a se dar cada vez mais por meio de transferências de contas que circulam nas instituições financeiras como capital portador de juro.
Determinação quantitativa do Valor relativo a Papel-Moeda
O valor das mercadorias é simplesmente quantificado em unidades simbólicas, expressas por papel-moeda estatal fiduciário. Noutros termos, o tempo de trabalho concreto socialmente válido das mercadorias à venda é quantificado como tempo de trabalho abstrato, materializável por meio de unidades de conta puramente simbólicas.
A extinção do padrão de preço legal em ouro físico faz com que as unidades de conta abstratas simplesmente sirvam como meio de comparação do valor das mercadorias entre si.
E assim aparece à luz do dia o que o ouro ocultava. Este nunca fizera outra coisa a não ser permitir que as mercadorias comparassem seus valores entre si, embora parecesse que só o ouro fosse capaz de medir-lhes o valor.
Movimento das Contradições do Papel-Moeda
Contradição valor↔valor de uso: acentua-se com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, gerando forte tendência ao aumento da variedade e da quantidade de mercadorias consumidas, ao mesmo tempo em que restringe o acesso a grande número de valores de uso para uma parte crescente da população, em função da maior concentração de riqueza propiciada pela acumulação de capital.
Contradição forma valor relativa↔forma equivalente: manifesta-se mais fortemente como contradição entre oferta de grande indústria e necessidade social solvente, gerando uma tendência à degradação da qualidade e durabilidade das mercadorias ofertadas ao grande público. Além disso, a administração do poder aquisitivo do papel-moeda pelo Estado transforma este em mediador dessa contradição. E o Estado, por natureza, tende a subordinar a necessidade social solvente às necessidades do capital.
A moeda metálica introduz o Estado na economia a título de força política ordenadora das relações econômicas; a moeda-papel faz da política de emissão monetária do Estado uma necessidade do capital; o papel-moeda transforma toda a economia monetária em pura política.
Funções do Papel-Moeda
. Função medida de valor.
Apesar do desaparecimento do padrão de preço em ouro, esta função continua desdobrada em medida de valor nominal e medida de valor real. Só que aqui a medida de valor real não é uma quantidade-padrão de ouro físico (o padrão de preço). É uma cesta de mercadorias que representa (como antes o ouro) uma quantidade determinada de trabalho abstrato, cuja função é servir de padrão de medida do valor das mercadorias.
Porém a passagem de um padrão de preço em ouro para uma cesta-padrão de mercadorias não é só uma mudança de conteúdo físico do padrão de medida, mas reflete o descompromisso formal do Estado com qualquer poder aquisitivo definido da moeda que emite, uma vez que a cesta-padrão de mercadorias apenas serve para estabelecer um índice de preços, cuja função, como o nome indica, é apenas indicar o poder aquisitivo da moeda, sem determiná-lo.
Cabe notar, por outro lado, que a cesta-padrão de mercadorias não está socialmente definida como equivalente. É definida apenas como padrão de medida por instituições criadas para acompanhar as variações do poder aquisitivo da moeda. Sendo que cada instituição tem seus próprios critérios para definir tanto o conteúdo da cesta-padrão como o método de cálculo, o qual implica atribuir ponderações diferentes para cada mercadoria. E embora, em princípio, qualquer cesta-padrão deva estar baseada nos hábitos de consumo da maioria da população, pode ser mudada arbitrariamente, assim como pode ser fragmentada em várias cestas, representando hábitos de consumo de segmentos diferentes da sociedade, cada uma dando origem a um índice de preços específico.
Evidentemente, o Estado é obrigado a escolher entre os sistemas existentes de cálculo do poder aquisitivo da moeda ou a criar um sistema oficial. Porque embora possa abandonar a função de garantir o poder aquisitivo do dinheiro que emite (que era a função do lastro monetário), o Estado não pode se furtar à função de arbitrar os conflitos que nascem de contratos que estipulam compensação por perda de poder aquisitivo da moeda. Entretanto, o índice de preços oficial não fixa uma relação de troca determinada entre a unidade monetária legal e a cesta-padrão de mercadorias; apenas faz uma definição ex post do poder aquisitivo da moeda.
De fato, a função medida de valor em papel-moeda é inteiramente uma função política. Conforme os interesses dominantes no aparelho de Estado, o poder aquisitivo da moeda será estabilizado a qualquer custo ou será deixado em queda. Porque a liberdade de emissão monetária sob a forma papel-moeda inclui o poder de criar inflação de preços até o limite de anular a função medida de valor.
. Função meio de circulação.
Esta função se desenvolve ao extremo, junto com o poder de emissão ilimitada de moeda; e por isso entra em contradição com a função medida de valor, uma vez que, na mesma medida em que a emissão monetária abundante facilita e até impulsiona a circulação de mercadorias, também gera instabilidade da função medida de valor.
. Função reserva de valor.
A grande expansibilidade do papel-moeda (e a perda de poder de compra a ela ligada) induz uma expansão da reserva de valor sob a forma poupança. Ao mesmo tempo se desenvolvem sistemas de aposentadoria e seguridade social, por precaução natural e por força de dispositivos legais, que dão à função reserva de valor sob a forma poupança uma dimensão extraordinária. E essa combinação da reserva de valor tradicional com o direito à seguridade social baseada em reserva de valor transformada em capital termina por tornar altamente destrutiva a contradição entre direitos teóricos da reserva de valor transformada em capital portador de juro e direitos realizáveis, determinados pelo capital operante na criação de valor real.
Tendências sociais impulsionadas pelo Papel-Moeda
. A contradição entre vendedores de força de trabalho e capitalistas passa sofrer o efeito das novas possibilidades de interferência estatal no poder aquisitivo do papel-moeda, o que permite rebaixamento de salário real por causas aparentemente impessoais, exteriores à relação de trabalho.
E isso significa que as relações sociais intermediadas por papel-moeda combinam a exploração do trabalho assalariado com variadas formas de transferência de riqueza para o capital, principalmente por meio de depreciação monetária, e por meio da expansão da dívida estatal.
Consequentemente, para o Estado, o papel-moeda significa um poder acrescido de criar valor fictício sob a forma de dívida estatal, porque, não mais havendo obrigação de manter um lastro de metal precioso, a quantidade de moeda posta em circulação é arbitrada com grande liberdade e a dívida estatal se torna o principal instrumento de regulação do poder aquisitivo da moeda.
Para o capital, cresce a importância dos direitos de propriedade fundados sobre a moeda em relação aos direitos fundados sobre o processo de produção e circulação. O papel-moeda significa a abertura de possibilidades infinitas de expansão do capital portador de juro, com base em moeda de crédito que cresce ao sabor dos gastos do Estado, e não somente em função da produção capitalista.
E para o povo, o papel-moeda significa o descolamento do preço da força de trabalho – o salário – dos preços das mercadorias. Porque a inflação de preços controlada pelo Estado, sempre sem correção automática do poder aquisitivo do salário, é um instrumento de política monetária e um fato normal da economia do papel-moeda.
. Por outro lado, desenvolve-se ao extremo a contradição entre circulação de capital e circulação de dinheiro. Porque a moeda de crédito posta em circulação nos descontos de títulos comerciais representa valor-capital, ao passo que o papel-moeda utilizado nas compras e vendas à vista representa simplesmente valor-equivalente de mercadorias em circulação.
E o capital, com a força expansiva que lhe é própria, tende a invadir todo o espaço da circulação de valor, até, no limite, abolir a circulação de valor-equivalente de mercadorias sob a forma de moeda manual, substituindo-a pela circulação de valor-capital sob a forma de cheques (desde o surgimento da moeda-papel) e, modernamente, meios eletrônicos de todo tipo, que só transferem valor entre as instituições em que se acumula capital portador de juro. Pois, para o capital, todo dinheiro deve render, pelo simples fato de existir.
Escolas dominantes no passado e na atualidade
Escola clássica (1776-1890): Teoria do valor-trabalho. É uma teoria puramente quantitativa do valor de mercadorias e coisas,que busca estabelecer um padrão de medida do valor dos bens produzidos. O tempo de trabalho gasto na produção desses bens define seu valor ou preço natural.
Em torno deste oscilam preços de mercado, gerados por variações de procura e oferta. E as quantidades trocadas tendem a corresponder a tempos de trabalho equivalentes, de modo que procura e oferta tendem a equilibrar-se no preço natural. Mas a medição efetiva do valor das mercadorias se dá por comparação do valor delas com o valor de massas definidas de metal precioso.
Por isso, nesta escola, dinheiro é metal precioso (ou símbolo dele), por sua aceitação geral como meio de expressão do valor das mercadorias.
Escola neoclássica (1890-…): Teoria da utilidade marginal dos bens econômicos. É também estritamente quantitativa, mas oposta à teoria clássica. Bem econômico é qualquer coisa relativamente escassa, tanto mercadoria como natureza, desde que apropriada pelos homens. E seu grau de utilidade é definido marginalmente pela última unidade apropriada; daí o termo “utilidade marginal” (ou “final”).
A utilidade marginal de um bem econômico corresponde a seu preço. As variações de procura e oferta expressam variações de utilidade marginal; e há uma tendência ao equilíbrio automático de procura e oferta. Logo, as quantidades trocadas tendem a expressar utilidades marginais iguais.
Trata-se, portanto, de uma teoria dos preços, e não do valor, ou então do valor/preço, uma vez que qualquer utilidade marginal se traduz sempre em preço. Além disso, é uma teoria dos preços de bens apropriados, e não de bens produzidos, uma vez que os preços são relacionados com a utilidade da apropriação de bens e não com a utilidade do esforço produtivo.
O dinheiro é apenas mais uma utilidade a quantificar marginalmente, sendo trocado por mercadorias ou coisas apropriáveis quando a utilidade destas se torna maior do que a utilidade marginal do dinheiro guardado. Razão pela qual o movimento do dinheiro é mal explicado nesta escola.
Ao reduzir o dinheiro a mero “bem”, semelhante a qualquer coisa útil, ela dá ao que hoje se chama “teoria monetária” um conteúdo puramente técnico, baseado em fórmulas controversas sobre “oferta” e “procura” de “moeda”, isto é, de dinheiro misturado com capital sob a denominação “meios de pagamento” (M1, M2, M3, M4), em circulação ou não.
Este artigo de Vito Letizia foi concluído em 9 de agosto de 2005.