Talvez o maior mérito do livro A era dos extremos de Hobsbawm seja transmitir uma forte impressão do tamanho da catástrofe humana que foi o século XX. Catástrofe em relação às mortandades gigantescas, sem equiparação possível com qualquer período histórico anterior. Catástrofe em relação à desvalorização do indivíduo, ao qual, durante longos momentos do século, foram negados todos os direitos humanos e civis, que haviam sido arduamente conquistados durante o “longo século” precedente: 1789-1914.
Aliás, a impressão de catástrofe é forte justamente porque o período histórico anterior se marcara em todas as mentes como o século que colocara a ideia do progresso como inevitabilidade, não só em termos materiais, mas também em relação ao avanço das liberdades, apesar das monarquias e das forças conservadoras, que resistiam tenazmente desde a Revolução Francesa.
Hobsbawm incita à colocação de uma pergunta, que seu livro não consegue responder: como foi possível chegar a isso? Como foi possível descer tanto na escala da civilização, apesar de uma vitória tão gigantesca para as forças progressistas como a Revolução Russa de 1917? Hobsbawm não pretendia mesmo responder a tudo. Mas incitar o leitor a se fazer perguntas dolorosas já é um mérito inestimável. As deficiências do livro estão mais no enfoque adotado na abordagem de alguns temas importantes.
O ano de 1917, explica Hobsbawm, pretendia ser o início da revolução mundial. E, desse modo, foi visto por milhões de pessoas, mesmo em países longínquos. Apesar disso, Hobsbawm acha que o mundo não estava maduro para uma revolução proletária naquele momento. É possível que seja uma suposição válida; e não é fácil provar o contrário. Mas cabe perguntar: será que algum dia haverá uma revolução que atinja imediatamente os principais países do mundo? Talvez o problema a resolver não seja por que a Revolução de 1917 não se espalhou imediatamente pelo mundo, mas antes por que a chama da revolução proletária pôde ser tão rapidamente submergida por uma vaga reacionária mundial. Vaga que Hobsbawm mostra detalhadamente ser mais ampla que os movimentos baseados explicitamente no modelo italiano ou alemão de fascismo.
Em todo caso, verificou-se concretamente que os bolcheviques ficaram isolados e encurralados numa revolução nacional, cuja preocupação passou a ser logo a simples sobrevivência. Fato consumado. Mas o problema aqui é que Hobsbawm faz uma ligação direta entre a sobrevivência da Revolução Russa e a sobrevivência de uma unidade política abrangendo todo o antigo Império Russo. Essa ligação só teria sentido na perspectiva de uma “revolução socialista num só país”, caso em que o tamanho do país é uma questão vital. Hobsbawm, porém, parece não acreditar na viabilidade da revolução socialista só na Rússia. Então seria o caso de fazer a distinção necessária: revolução mundial e sobrevivência da unidade do Império ex-czarista eram coisas diferentes e mesmo contrárias. Aliás, o governo bolchevique, em sua primeira fase, não pretendia impor-se sobre todo o ex-Império. Nessa fase é que foram concedidas, sem conflito, as independências da Finlândia, da Polônia e dos Estados Bálticos, todos anteriormente províncias do Império Russo. Nenhum desses novos países declarou-se socialista. Nem por isso, o governo bolchevique se achou na obrigação de impedir sua independência.
Não perceber a contradição entre revolução e império faz Hobsbwam valorizar a disciplina bolchevique de modo acrítico, misturando disciplina consciente e arregimentação cega, além de atribuir aos bolcheviques, objetivos que estes não se davam antes de 1921. Manter o Império havia sido objetivo central do czar e da impotente burguesia russa (impotente em parte porque se submetia ao czar e por amor ao Império), não era objetivo dos revolucionários .
Sem perceber isso, não dá para entender como foi possível que, após uma revolução da importância da de 1917, que despertou na humanidade as imensas esperanças descritas por Hobsbawm no capítulo 12, tenha sido imediatamente seguida do mais profundo retrocesso político do século. Apenas a não-extensão da Revolução Russa não é suficiente para explicar isso. A Revolução Francesa terminou militarmente derrotada. Nem por isso deixou de exercer influências libertárias que as próprias monarquias contrarrevolucionárias tiveram que levar em conta para sobreviver. Já no caso da Revolução de 1917, ocorre o contrário. Cerca de dez anos depois desce a mais negra noite de todos os tempos: é “meia-noite do século”, disse Victor Serge, sem que o partido que dirigira a Revolução Russa tivesse perdido o poder. Alguma coisa de muito essencial deve ter deixado de funcionar, sob a máscara de uma falsa continuidade política. E deve ter sido uma reviravolta muito mais grave e profunda que o Thermidor da Revolução Francesa.
As consequências disso se fizeram sentir antes, durante e no fim da Segunda Guerra Mundial. Hobsbawn descreve os sofrimentos causados pela Guerra como mero resultado das próprias operações militares. Mas nem tudo foi resultado inevitável do simples uso do poder destrutivo disponível na época. Na Primeira Guerra Mundial não se havia visto ato tão sanguinário como o massacre de quatro mil prisioneiros poloneses, por ordem de Stalin, em 1940. A Paz de 1945 repetiu as barbaridades da Paz de Versalhes com aumento, apesar da participação da potência “socialista” entre os vencedores de 1945. A maior parte dos deslocamentos de povos no fim da última guerra foi puro revanchismo, com caráter explícito de limpeza étnica. Por incrível que pareça, no fim da Primeira Guerra Mundial foi possível ver um presidente burguês: Woodrow Wilson, dos EUA – ridicularizado por Lenin –, pregar uma paz sem anexações. No fim da Segunda Guerra Mundial, não houve voz contra o revanchismo. Treze milhões de alemães foram expulsos da Europa oriental e central, com o único objetivo de aumentar o lebensraum eslavo. Foram expulsos simplesmente pelo fato de serem alemães. É de Stalin a frase: “Um alemão só é bom, morto”. Não disse um nazista. Assim, o que W. Wilson não havia conseguido em 1919 – ser levado a sério como campeão da democracia da autodeterminação dos povos – foi conseguido por Roosevelt e Truman sem muito esforço. Porque estes tinham em frente, como termo de comparação, a URSS, não mais a Rússia revolucionária dos tempos de Wilson.
Hobsbawm dá uma grande importância à depressão dos anos 30 como determinante dos rumos políticos da época. A depressão teria tido um papel decisivo em fazer da democracia “uma planta frágil”, em muitos países. Isso até tem um fundo de verdade. Mas não é possível entender completamente a fragilidade da democracia no entreguerras sem lembrar o progressivo afastamento entre luta por liberdades democráticas e luta pelo socialismo, praticado pela III Internacional desde o começo. Essa prática – depois teorizada para justificar o despotismo stalinista – fez que o segmento importante do movimento operário deixasse de ser um baluarte contra os movimentos restauracionistas da ordem social, gerados pelo capitalismo em crise. Antes de 1914, ‘todo’ o movimento socialista fora também um movimento libertário. Além disso, para Hobsbawm, o impacto da depressão teria sido a grande força renovadora das ideias econômicas da época, porque a depressão teria desacreditado o pensamento econômico clássico, abrindo espaço para as políticas de regulação do capitalismo posteriores. Especialmente em razão desse descrédito da ortodoxia econômica, no segundo pós-guerra, os “formuladores de decisões”, como diz Hobsbawm, passaram a ter preocupações centrais: obter uma distribuição de renda mais igualitária do que a normalmente ensejada pelo capitalismo ‘puro’ e evitar grandes níveis de desemprego.
Hobsbawm se deixa levar muito facilmente pela crença na racionalidade dos “formuladores de decisões” capitalistas. Ele chega a ponto de chamar de reforma do capitalismo” a adoção das políticas de pleno emprego e bem-estar social no segundo pós-guerra. Tal ‘reforma’ é definida por ele como “essencialmente uma espécie de casamento entre liberalismo econômico e democracia social”. Um pouco de resguardo seria melhor.
Em situações de grande perigo social, os “formuladores de decisões” instalados no poder tendem fortemente a dividir-se entre dois tipos básicos de saída, conforme suas inclinações pessoais: partir para o enfrentamento com os movimentos reivindicatórios ou partir para concessões. Ora, no fim da Segunda Guerra Mundial, o perigo para o capitalismo era uma realidade assustadora. Diferentemente do que ocorrera na vez anterior, nenhum país em guerra da Europa ocidental, exceto a Grã-Bretanha, conseguira manter de pé o aparelho de Estado capitalista. Todos os demais países beligerantes emergiram da Guerra com aparelhos de Estado improvisados, em que se misturavam instituições criadas pela resistência antifascista e instituições de emergência criadas pelos exércitos de ocupação. Em várias regiões, houve “zonas liberadas” por partisans antes da chegada dos exércitos regulares. Tentar impor soluções capitalistas ortodoxas naquela parte da Europa, naquela época, seria realmente demência suicidária. Razão pela qual todos os economistas com a tarefa de se dirigir ao grande público viraram subitamente humanistas sensíveis. Para explicar suas mudanças de opinião, economistas antes conhecidos como empedernidos mastigadores de “fatores de produção”, passaram a falar nas tristes recordações da Grande Depressão. Mas as tristes recordações não explicavam tudo.
Hobsbawn observa, pertinentemente, que os resultados da Segunda Guerra Mundial retiraram a extrema-direita do cenário político por um bom tempo. No fim da guerra, só os “formuladores de decisões” dispostos a fazer concessões tinham voz e audiência. É isso que mais explica por que foi tão fácil fabricar um pacto aceitável para trabalhadores e patrões, então alçados à categoria nova de “parceiros sociais”. Chamar essas concessões de “reformas do capitalismo” exagera seu alcance e objetivos. As políticas de bem-estar social e pleno emprego do segundo pós-guerra foram uma resposta adequada a uma situação política em que o sistema capitalista se encontrava extremamente fragilizado na Europa ocidental, ao passo que a oriental estava ocupada pela URSS. Mas mesmo nos EUA, cujo governo do Partido Democrata terminara a guerra prestigiado, não havia condições de ignorar as esperanças da enorme massa mobilizada para a guerra e que retornava buscando o “mundo melhor”’ que a propaganda oficial prometera durante todo o conflito. Por outro lado, em termos econômicos, na Europa partia-se de infraestruturas destruídas, com os trabalhadores e toda a classe média, baixa e alta, reduzidos às rações alimentares distribuídas pelo Exército dos EUA. Quer dizer: as possibilidades de investimento eram aparentemente infinitas, com grande espaço para uma distribuição mais igualitária de rendimentos, sem renúncia a lucros.
Hoje se pode ver que aquilo não era exatamente uma reforma do capitalismo porque assim que aquelas condições anormais deixaram de existir, o Estado de bem-estar começou a ser atacado. E já nos anos 80 todos os economistas com clientes importantes voltaram aos mesmos cacoetes clássicos dos anos 1920 e 1930. Eles simplesmente voltaram a seu estado normal. Porque os Estados capitalistas estão agora firmes; e os “formuladores de decisões”, no momento, não estão conseguindo enxergar a menor nuvem negra no horizonte à esquerda.
Talvez o pecado mais grave do livro seja a falta de conclusões convincentes sobre o “socialismo real” e o colapso da URSS. Sem dúvida, é bastante boa a comparação que Hobsbawm faz entre a URSS e China, assim como sua percepção de que o Estado burocrático chinês se mantém porque lançou suas reformas sobre uma população majoritariamente camponesa. Mesmo assim, não é o caso de deixar passar sem retoque a opinião da mídia, impressionada com a aparente estabilidade do regime chinês. E quanto às reformas de Gorbachev, a conclusão de que: “A URSS sob Gorbachev caiu nesse poço em expansão entre a glasnost e a perestroika”, é muito pouco para explicar um colapso fragoroso que, por incrível que pareça, apenas cinco anos antes estava fora de qualquer previsão, mesmo por parte de seus mais ferrenhos adversários.
Não há como fugir à impressão de que, a respeito da URSS, viveu-se um equívoco universal durante decênios. Seria preciso pelo menos tentar uma explicação que começasse a abordar esse equívoco, partilhado pela direita e pela esquerda, quanto ao caráter e, sobretudo, à viabilidade do “socialismo real”.
Em certo ponto do livro, Hobsbawm parece reconhecer que o regime soviético era inviável:
“A tentativa de construir o socialismo produziu conquistas notáveis – não menos a capacidade de derrotar a Alemanha na Segunda Guerra Mundial –, mas a um custo enorme e inteiramente intolerável, e daquilo que acabou se revelando uma economia sem saída.”
As “conquistas notáveis”, no caso, estão todas ligadas à industrialização da URSS, que chegou a alçar-se à condição de segunda potência industrial do mundo, partindo praticamente do zero no fim da Guerra Civil, em 1920. Entretanto, o fato de que essa industrialização terminou num beco sem saída recoloca o problema do valor do método escolhido ou de algum equívoco fundamental que deve ter havido em suas origens; ou surgido em algum ponto de sua edificação.
Para tentar uma primeira resposta, poder-se-ia inquirir se uma industrialização obtida a chicote pode ter vida longa. O senso comum já é suficiente para suspeitar que o chicote não é bom instrumento para desenvolver a criatividade. O chicote pôde fazer a URSS alcançar momentaneamente o Ocidente, mas não ultrapassá-lo. A coerção desmesurada já continha os germens da estagnação tecnológica que levaria a URSS ao impasse mais tarde. Isso pode ser afirmado, mesmo que se queira aceitar o chicote como “motor” válido para a construção de algum “socialismo” monástico de baixo consumo. De qualquer maneira, no caso da URSS real, interessa ressaltar que o resultado alcançado foi provisório. Sua industrialização avançava inexoravelmente para um beco sem saída.
No entanto, apesar de reconhecer que o resultado final da industrialização stalinista foi a “economia sem saída”, Hobsbawm mantém-se apegado à ideia de que a URSS não teria outro caminho a seguir nos anos 1920-1930:
“Qualquer política rápida de modernização da URSS, nas circunstâncias da época, tinha que ser implacável e, porque imposta contra o grosso do povo, impondo-lhe sérios sacrifícios, coercitiva em certa medida.”
A própria frase – política (…) coercitiva em certa medida” – deixa no ar uma questão: em que medida? Aquela medida de coerção foi correta? Mais lógico, à luz do que Hobsbawm sabe hoje, seria dizer que talvez alguma coerção fosse inevitável “nas circunstâncias da época”, porém a coerção stalinista provou ser incompatível com uma industrialização inovadora e sustentável a longo prazo. Ou, até mesmo, poderia continuar achando que, em 1929, não houvesse um caminho muito diferente à disposição de Stalin, mas para ser coerente com sua própria conclusão final sobre a economia soviética, Hobsbawm deveria também lembrar que o governo da URSS tinha que encontrar um meio de dispensar a coerção “contra o grosso do povo”, o mais cedo possível, se quisesse manter a economia viável.
Sobra a impressão de que, a respeito da URSS, o arrazoado de Hobsbawm é, em parte, emotivo. Isso transparece mais fortemente na convalidação implícita das palavras de Oskar Lange em seu leito de morte:
“Havia uma alternativa para a corrida indiscriminada, brutal, basicamente não planejada, ao primeiro plano quinquenal? Gostaria de dizer que havia, mas não posso.”
Hobsbawm parece não se dar conta de que Oskar Lange, um defensor da economia planificada, morreu em 1965, ou seja, morreu a tempo de levar consigo suas convicções intactas. Os que morreram ou vieram a morrer depois de 1991 não têm mais esse privilégio, a não ser que, de 1989 em diante, tenham passado a circular de olhos vendados.
Além do mais, já antes do desabamento da URSS, surgiram novas informações sobre os anos 1930, que O. Lange não chegou a conhecer. Informações que Hobsbawm mostra ter, ao sugerir veladamente que, somente para o Segundo Plano Quinquenal (1933-1937), poder-se-ia fazer uma estimativa de 16,7 milhões de mortos, vítimas da fome e da repressão. Isso é inferido da constatação do decréscimo da população da URSS no período do plano; informação classificada como secreta em 1938. Quer dizer: Stalin proibiu a divulgação das estatísticas demográficas do Segundo Plano Quinquenal porque estas depunham contra sua “vitória econômica”.
As informações que se têm hoje sobre os anos 30 são arrasadoras. Mesmo continuando a aceitar que a URSS não poderia dispensar a imposição de sacrifícios ao povo naquela época, sobra base mais que suficiente para afirmar, em 1990, que aquela coerção foi de eficácia imediata altamente duvidosa, além de comprovadamente nefasta para o desenvolvimento futuro da URSS. Nessa questão da suposta necessidade histórica do stalinismo, talvez melhor seja deixar falar Moshe Lewin que, já em 1965, escreveu um artigo para a revista Soviet Studies, na qual, após descrever detalhadamente a enorme perda de energia humana e de meios materiais gerada pelos zigue-zagues desastrosos de Stalin durante a coletivização da agricultura, conclui:
Se é certo que a industrialização devia acarretar mudanças profundas no campo, é falso, a nosso ver, imaginar que tais mudanças só poderiam ser feitas através daquela coletivização que a Rússia experimentou. Por que fazer do kolkhoz a única forma de exploração coletiva, quando as estruturas aldeãs sugeriam outras soluções? (…) Pretender que a liquidação da esquerda, adepta entusiasta da coletivização e da política antikulak fosse uma pré-condição capital da industrialização futura e que essa liquidação devesse ser feita por um Stalin que, nessa época (1928-1929), sequer refletira sobre o que seria uma política futura, significa sustentar uma teoria bem estranha. Só é possível subscrevê-la aceitando outra teoria igualmente bizarra, que consiste em apresentar Stalin como um “deus ex-machina”, como o único homem no Partido capaz de transformar a Rússia em país industrial.”
Paralelamente a sua apreciação sobre a economia da URSS, Hobsbawm vai passando uma ideia, igualmente afetada por seus sentimentos pessoais, sobre a legitimidade dos Estados erguidos em nome do “socialismo real”. Os acontecimentos espetaculares do fim dos anos 1980 e início dos 1990 na Europa oriental e na URSS dão larga margem a um questionamento da própria legitimidade dos regimes instaurados nessa parte do mundo.
A respeito da Europa oriental, Hobsbawm nota que as burocracias desses países procuraram retirar-se do poder discretamente (exceto na Romênia) “porque tinham visivelmente perdido a justificativa que mantivera seus quadros comunistas no passado”. A justificativa, no caso, era o “socialismo real”, que só funcionava sob a tutela da URSS. Quando esta acabou, deu uma epidemia de amnésia na Europa oriental. De repente, seus governantes não se lembravam mais de como tinham ido parar ali.
Para a URSS, a opinião de Hobsbawm é diferente:
“Ao contrário de muitos estrangeiros, todos os russos sabiam bastante bem quanto sofrimento lhes coubera e ainda lhes cabia (em 1953). Contudo, em certo sentido, pelo simples fato de ser um governante forte e legítimo das terras russas e delas um modernizador, ele (Stalin) representava alguma coisa deles próprios.”
Depois de confundir sobrevivência da revolução com sobrevivência do Império Russo, Hobsbawm só podia confundir conformismo do povo com legitimidade de Estado stalinista.
A legitimidade do Estado soviético nasceu e ficou ligada até o fim a seus laços com a Revolução de Outubro. Esses laços deixaram de ter realidade efetiva já nos anos 1920, porém todos os burocratas que liquidaram as esperanças de Outubro tinham consciência de que a legitimidade de sua dominação dependia daqueles laços. Por isso, mantiveram a farsa do “socialismo” enquanto puderam. Quando não puderam mais, foi um salve-se quem puder. Diante de todos os acontecimentos dos anos 1980 e 1990, pode-se afirmar que a brutalidade aparentemente absurda de Stalin decorria, em parte, de sua legitimidade precária. Só partindo dessa premissa se pode começar uma discussão séria sobre as hecatombes de Stalin, superando a mera lamentação humanitária, assim como o conformismo com a suposta inevitabilidade de um regime “implacável” naquela época e lugar.
Somente um regime de legitimidade precária pode desabar da noite para o dia sem que se manifestem forças sociais significativas em sua defesa. O grande argumento histórico pró-Stalin (lembrado por Hobsbawm) foi sua vitória sobre Hitler. De fato, foi a vitória sobre os nazistas que deu à burocracia do Kremlin a autoridade que lhe permitiu prolongar seu regime até o fim dos anos 1980. Entretanto, uma olhada mais detalhada nos grandes fatos históricos é indispensável, para quem não quer se contentar com panegíricos.
A agressão hitleriana mostrou, desde seu primeiro momento, uma face brutalmente racista e antieslava (não só anticomunista) que tornou impossível qualquer movimento de simpatia em relação aos invasores por parte dos povos da Europa soviética, exceto de alguns, não-eslavos, da área do Cáucaso. É inegável que o extremo reacionarismo do comando nazista foi um fator favorável a Stalin; do mesmo modo que o extremo reacionarismo dos “brancos” na época da Guerra Civil (1918-1920) fora um fator favorável aos bolcheviques. O racismo antieslavo do comando nazista facilitou a aglutinação dos russos, ucranianos e bielo-russos em torno do único Estado que parecia capaz de salvá-los da aniquilação completa. Stalin mobilizou o povo fazendo apelo basicamente ao patriotismo. Os operários escreviam sobre os tanques, antes de remetê-los ao front: za rodinu (pela pátria). Se Stalin tivesse tentado mobilizar o povo pelo “socialismo” dos Planos Quinquenais, certamente ter-se-ia desastrado. Não por acaso, o nome oficial da Segunda Guerra Mundial na URSS era “Grande Guerra Patriótica”. E assim a guerra foi entendida pelo povo. Isso permite qualificar a legitimidade ganha pelo regime com a vitória sobre a agressão nazista. O regime legitimou-se como defesa eficaz dos povos eslavos contra agressores externos. Quer dizer: obteve um novo tipo de legitimidade, mais restrito. Nem antes, nem durante, nem depois da guerra o “socialismo” de Stalin foi sentido como aceitável e legítimo pelos povos da URSS, eslavos ou não.
O próprio Hobsbawm ressalta o apoliticismo extremo do povo nos países do “socialismo real”. Ora, o apoliticismo na URSS tinha um significado especial. Era o único país do mundo que não podia ter um povo apolítico. Porque era o único que tinha como meta oficial “elevar o nível de consciência política da população”, para isso restringindo a propaganda religiosa e instituindo um certo “marxismo” como matéria obrigatória em todos os níveis de ensino. Sob tal ordenamento da vida cultural, o profundo apoliticismo do povo soviético valia como uma rejeição maciça do regime.
Então, as conclusões devem ser tiradas: o Estado soviético conseguiu legitimar-se? Sim. Porém, em primeiro lugar, conseguiu-o somente depois da Segunda Guerra Mundial e não para todos os povos da URSS; em segundo lugar, essa legitimidade parcial e diferente da pretendida originalmente não dizia respeito ao “socialismo real”.
Diga-se de passagem, mesmo pretendendo que o apoliticismo do povo soviético não seria evidência suficiente da legitimidade precária de seu Estado, as reações nacionalistas que se seguiram ao desmoronamento do regime não deixariam margem a dúvidas: ao primeiro abalo da capacidade repressiva do Estado soviético (em particular a desarticulação da KGB, vitimada pela glasnost), a “União” entrou em rápida dissolução, inclusive a união “interna” da Rússia.
No final do livro, Hobsbawm descreve a crise da própria economia capitalista. Ao lado de muita informação importante, Hobsbawm tira algumas conclusões temerárias. Como, por exemplo: “O triunfalismo neoliberal não sobreviveu aos reveses do início dos anos 1990.” É muito otimismo de Hosbsbawm achar que o neoliberalismo se encontre abalado em virtude dos sofrimentos que esteja causando à humanidade a partir dos anos 1980.
Infelizmente, a história não é um sistema de reflexos sociais perseguindo o caminho do menor sofrimento. Se fosse assim, não se teria conseguido descer aos abismos de repressão sanguinária atingidos durante o “breve século XX”.
Sem dúvida, é absolutamente verdadeira a exposição do que Hobsbawm considera uma depressão econômica comparável à dos anos 30, hoje se estendendo em graus diversos no mundo inteiro. Entretanto, Hobsbawm subestima a capacidade de cinismo dos economistas com acesso ao poder e à grande mídia. Para eles, o que está ocorrendo é apenas um processo “inevitável” de adaptação à “globalização econômica”. O sofrimento dos seres humanos não é parâmetro de avaliação dos resultados das políticas decididas pelos clientes desses economistas. E vai continuar sendo assim, enquanto reações sociais de grande envergadura não obriguem os “formuladores de decisões” a reverem seus parâmetros.
Todas as ressalvas acima não impedem que o livro de Hobsbawm mereça ser lido com atenção. Vale um bom curso de História. Mas mesmo os melhores cursos de História têm lições que devem ser recebidas cum grano salis.
Esta resenha de Vito Letizia sobre o livro A Era dos Extremos – o breve século XX, de Eric Hobsbawm, foi publicada primeiro na revista “O Olho da História” em junho de 1996, com o título “A era do retrocesso: as esquerdas e as guerras no século 20”.