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Marx, os marxistas e a relação sindicato-partido-socialismo: seu passado e seu futuro

Passeata na Ladeira do Carmo, na greve geral de 1917
A Ladeira do Carmo tomada de trabalhadores na greve geral de 1917 em São Paulo.

Introdução

Após a queda do muro de Berlim multiplicam-se as teorias que defendem “um novo papel” para os sindicatos: o sindicalismo “moderno” deveria ser mais “construtivo” e propor soluções “viáveis” nas negociações trabalhistas; deveria considerar os patrões sob um ângulo mais “positivo” e aprender a reivindicar pensando também na empresa.

Segundo o “consenso” martelado pela mídia, a história teria provado que é falsa a teoria marxista, que afirma o antagonismo de interesses entre empregados e patrões. Aliás, o marxismo como um todo seria um grande equívoco. Prova: a tentativa de aplicá-lo na URSS fracassou. Mas e o capitalismo? Fracassou ou é bem-sucedido? Sobre a tentativa de fazer o capitalismo gerar uma sociedade de bem-estar, o que os “modernizadores” capitalistas têm a dizer? Mesmo supondo que, na URSS tenham tentado honesta e escrupulosamente aplicar o marxismo isso não prova a invalidade ou validade da análise marxista sobre o capitalismo. Pela simples razão de que uma boa análise do capitalismo não precisa ser, ao mesmo tempo, uma receita de socialismo. Além disso, a validade do que Marx diz sobre as relações de trabalho no capitalismo não depende da validade de tudo que ele diz sobre o sistema em geral.

Marx explica, resumidamente, que os assalariados têm interesses antagônicos aos dos capitalistas, porque lhes convém outra forma de distribuição da riqueza, que remunere prioritariamente o trabalho, e não o capital; inversamente à conveniência dos capitalistas. Por em prática permanentemente o princípio de remuneração prioritária do trabalho implicaria necessariamente, segundo Marx, modificações radicais no próprio modo de produção. É dessa necessidade que se origina a perspectiva socialista. Entretanto, socialismo ou não, os trabalhadores não podem partir da lógica do capital para defender a remuneração de seu trabalho. Não para defender eficazmente, pelo menos.

Todas as correntes de direita sempre se caracterizaram per defender a “unidade” de interesses entre trabalhadores e patrões, no quadro dos objetivos gerais da “nação”. A partir daí os fascistas desenvo1veram uma a teoria (e prática) de colaboração sistemática e obrigatória entre todos os envolvidos na produção. Os menos radicais, ao mesmo tempo que se declaram contra as ideias direitistas, afirmam ser necessário reconhecer a “complementaridade” de trabalhadores e patrões na função produtiva. Essas duas partes básicas da atividade produtiva – capital e trabalho – são mutuamente necessárias ao capitalismo. Logo, não seria sensato fugir à colaboração.

Schumpeter, por exemplo, afirma que, ao contrário do que diz Marx, as relações mais normais entre trabalhadores e empresários são de “aliança e colaboração”. O que seria historicamente demonstrável pelos longos períodos de atividade econômica tranquila e os relativamente curtos períodos de turbulência social.

Há nesse debate uma confusão de escala. Em termos de sistema capitalista, assalariados e proprietários dos meios de produção constituem os dois lados da mesma relação de produção básica. Logo, a rigor, podem perfeitamente ser considerados complementares, desse ponto de vista, que se situa na escala do sistema como totalidade.

Sem dúvida, desde o momento em que um trabalhador concorda com um salário e se dispõe honestamente a trabalhar de modo correto, está organizada uma relação de “aliança e colaboração”, ou uma relação de “complementaridade”. O marxismo não nega esses fatos da vida, ao contrário do que dizem os que pretendem reduzi-lo a uma “ideologia da discórdia social” (redução muito útil para justificar a repressão aos marxistas). Entretanto, a realidade é mais complexa do que querem crer os amantes da concórdia social (ou a polícia). A complementaridade dos dois lados da relação de produção capitalista não faz do capitalismo um sistema harmônico. O capitalismo move-se pela necessidade constante de realizar lucros, relacionados a um capital constantemente crescente. Isso num processo entremeado de crises comerciais e recessões. Nesse contexto, o conflito é inevitável, independentemente da boa vontade dos envolvidos no sistema. Basicamente, os capitalistas tendem a tratar os custos humanos de produção do mesmo modo que tratam no demais custos: tentando manter todos baixos; enquanto que aos trabalhadores interessa sempre incluir o bem-estar social como um patamar não-rebaixável, sejam quais forem as condições afetando os fatores de produção. Não há como reduzir esses dois interesses básicos a um único.

Consequentemente, a cada momento histórico corresponde uma resultante geral das pressões nascidas dos interesses internos divergentes, que constituem o capitalismo. Essa resultante se traduz num nível de salários, num nível de condições de trabalho, num nível de bem-estar social. Pode ser uma resultante estável: nesse caso aparece uma situação de “harmonia social”, para os que se limitam a observar a superfície da realidade; ou pode ser instável: nesse caso o conflito torna-se evidente para todos. Obviamente, os períodos de instabilidade tendem a ser mais curtos, no tempo histórico.

Isso tudo não é novidade para marxistas e não-marxistas. Segundo Max Weber, toda sociedade organizada pressupõe algum consenso social, abrangendo todos que nela estão integrados de alguma maneira. A sociedade feudal não teria existido sem um amplo consenso social sobre a legitimidade do direito a certos privilégios por parte da nobreza e do clero. Consenso que necessariamente incluía os não-privilegiados: burgueses e servos. Isso não impediu a persistência de conflitos sociais, ora latentes ora visíveis à luz do dia, ao longo de toda a Idade média. E o processo cumulativo de milhares de conflitos parciais, que aparentemente não questionavam a sociedade aristocrática, resultou finalmente na extinção da nobreza e do clero como classes distintas.

A diferença entre o pensamento marxista e o não-marxista não está na rejeição ou aceitação pura e simples das relações sociais vigentes. Está na rejeição ou aceitação da sociedade vigente como um fato definitivo e imutável. Para o marxismo não há relações sociais definitivas e imutáveis. No nível de desenvolvimento econômico atingido na Idade média, era inevitável que uns fossem nobres, outros servos, etc. No nível de desenvolvimento atingido no século XIX tornara-se absurdo, para quase todos, que uns fossem considerados melhores que outros por terem “sangue azul”. No século XIX parecia obvio – e parece ainda hoje – que a sociedade se divida entre capitalistas e demandantes de emprego. Para os marxistas, porém, isso é uma contingência histórica, exatamente como as precedentes.

Mas é preciso tomar cuidado: o essencial do marxismo não é entender que, mais cedo ou mais tarde, os assalariados expropriarão os capitalistas e criarão outro tipo de sociedade. E, principalmente, não é marxismo achar que os assalariados tenham o dever de lutar pela expropriação dos capitalistas. O essencial entender que, enquanto perdurar a relação de produção básica do capitalismo (o assalariamento), haverá um processo de transformações constantes nessa relação. Os conflitos entre assalariados e capitalistas constituem a principal força motriz dessas transformações. E é a inevitabilidade e a existência real desses conflitos que fundamentam em última instância, a possibilidade de superação do capitalismo, ou seja, da passagem a relações humanas menos restritivas quanto ao número de beneficiários do progresso social.

Socialismo? Melhor não insistir nos rótulos. Marx passou a preferir o termo “comunismo”, porque “socialismo” estava então virando sigla de filantropos e visionários excêntricos. Imagine se Marx vivesse hoje! Seja como for, um, novo sistema econômico não é bandeira de luta. O feudalismo não foi derrubado porque reivindicavam “capitalismo”. Reivindicavam o fim de desigualdades que se haviam tornado insuportáveis. O capitalismo foi simplesmente ocupando o lugar vago deixado pelas relações feudais, destruídas na luta contra o insuportável. Por que teria que ser diferente com o capitalismo? O método marxista se for válido, deve sê-lo para os dois sistemas. Por isso, para os trabalhadores, mais importante do que proclamar siglas, é não submeter suas reivindicações ao que os advogados do capitalismo dizem ser possível. O possível para o capitalismo pode tornar-se insuportável para a maioria da humanidade.

O mais importante termina sempre sendo a dura realidade: o fato inarredável de que, assim como os capitalistas não abrem mão de seus lucros, os assalariados não podem abrir mão de suas vidas (ou do nível de vida a que se acostumaram). É devido a essa realidade, às vezes evidente, às vezes menos clara, que os sindicatos não podem subordinar-se ao capital, sem por em risco seu futuro.

São as simples necessidades das pessoas que podem tornar inevitável a transgressão das barreiras impostas pelo lucro privado. O dever elementar dos sindicalistas é serem fiéis aos interesses dos assalariados. Tudo mais deve subordinar-se a isso. Portanto, a grande contribuição de Marx para o sindicalismo está principalmente em fundamentar por que as reivindicações dos trabalhadores não podem restringir-se ao aceitável pelos capitalistas. Tal restrição seria uma atitude conservadora que, a longo prazo, destruiria a vida sindical, porque impediria os sindicatos de assumir qualquer papel em mudanças que atingissem as regras supostamente eternas do capitalismo.

Razão pela qual reivindicações “irracionais”, do ponto de vista dos especialistas de plantão, podem, e eventualmente devem, ser defendidas pelos sindicatos. Especialistas são sempre mastigadores de informações criadas pelo sistema em que se formaram. Pretender deles qualquer luz sobre uma saída quando o sistema chega a um impasse é loucura. Felizmente a plebe rude tende a apegar-se ao bom senso. É o que tem aberto caminho ao progresso nos momentos cruciais da história.

Claro que, por outro lado, todo sindicato, ao negociar com os patrões, é obrigado a fazê-lo dentro das normas estabelecidas pelo sistema. Claro. Mas há negociações e negociações. Negociar dentro do sistema, sim; pois é o que está em vigor. Mas é preciso negociar sem assumir responsabilidade sindical pelo bom andamento do sistema. O bom andamento do sistema deve decorrer da satisfação dos trabalhadores; não da “compreensão” dos sindicalistas.

Que os capitalistas pretendam eternizar seu sistema, mesmo deixando cada vez menos pessoas satisfeitas, faz parte da vida habitual. Que sindicalistas também assumam essa atitude é uma aberração só explicável pelos processos políticos que deram origem ás burocracias sindicais e ao peleguismo. Uma das evidências que transparecem nos textos de Marx é que este não via os sindicatos como “naturalmente” conciliadores. A não ser no caso de sindicatos por profissão, ligados à defesa de certos privilégios corporativos. A tese de que os sindicatos são “parte essencial da sociedade capitalista (a expressão é de Perry Anderson, que se baseia em Lenin) não é de Marx. Em primeiro lugar, sindicatos só se tornam “parte do sistema” depois que os capitalistas desistem de impedir que eles se organizem. Antes disso, os capitalistas não perdiam o sono por falta de sindicatos em suas empresas. Em segundo lugar, a estabilização dos sindicatos como instituições aceitas e respeitadas pelos capitalistas só ocorre quando é estabelecido um “modus vivendi” considerado menos inconveniente e menos arriscado do que um regime político repressivo.

Entretanto, mesmo enquadrados em certas normas legais exigidas pelo sistema, sindicatos realmente representativos não deixam jamais de dar dores de cabeça aos capitalistas. Pelo simples fato de representarem fielmente interesses opostos. Só quando essa fidelidade deixa de ocorrer é que se pode falar em sindicatos “parte essencial da sociedade capitalista”.

Pois bem. Nunca na história do movimento operário os sindicatos se tornaram “parte do sistema” sem que os partidos nascidos do movimento operário o fizessem antes. Enquanto viveu, Marx tentou demonstrar que o movimento operário necessita e cria tanto partidos como sindicatos no mesmo processo de lutas. Apenas as tarefas a serem cumpridas por uns e outros é que diferem. E ambas formas de organização eram vistas como necessárias para os trabalhadores; não uma para os trabalhadores, outra para o sistema capitalista. Marx também achava que os partidos e sindicatos operários que se estavam organizando em sua época conseguiriam um dia expropriar os capitalistas e construir uma nova sociedade, baseada em novo sistema econômico. Seu otimismo foi exagerado, sabe-se hoje. Mas mesmo que o máximo alcançável pelos trabalhadores seja sempre um meio-termo entre sua vontade e a dos patrões, sempre serão necessárias duas vontades independentes para se chegar a qualquer resultado realmente superior ao “statu quo ante”. E nisso Marx não se enganou. Todo o progresso alcançado pela humanidade até hoje não veio da benemerência dos poderosos. A vontade independente dos assalariados foi e continua sendo um fator insubstituível de progresso, desde o surgimento do capitalismo. Isso tudo é para explicar por que se considerou necessário relembrar o pensamento de Marx e dos marxistas sobre sindicalismo.

Este é um apanhado das principais orientações apresentadas aos trabalhadores ao longo da história de suas lutas desde a época de Marx. O objetivo é recolocar a discussão sobre bases históricas mais claras para os que querem fazê-la seriamente. Para tal fim este texto apoia-se, na medida do possível em função do tempo e das condições em que foi elaborado, em citações que certamente serão úteis aos interessados, quer concordem ou não com as conclusões do autor.

I

Congresso de fundação da 1ª Internacional, em 1864
1864: o 1º Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores.

As velhas discussões do movimento operário sempre se recolocam porque até certo ponto o proletariado tem constantemente voltado à estaca zero em matéria de organização sindical e política. Mas só até certo ponto, porque a evolução das relações entre as classes e no interior da classe operária vai gradativamente fazendo sentir seu peso, apesar da descontinuidade do processo organizativo do proletariado e das cortinas de fumaça produzidas por aparelhos políticos e seitas profissionalmente dedicados a difundir um “marxismo” que tem com o pensamento de Marx a mesma relação que os ritos têm com a vida.

Na época de Marx o proletariado partia de formas primitivas de organização defensiva, em direção a formas mais eficazes de organização sindical e à forma partidária de organização política. A construção da Associação internacional dos Trabalhadores, da qual Marx foi fundador e membro de sua direção, apoiava-se tanto em movimentos sindicais como políticos e considerava como sua tarefa primordial ajudar os sindicatos existentes a avançarem no sentido da adoção do socialismo como objetivo final de suas lutas.

A AIT introduziu uma grande “divisão” no movimento operário da época: de um lado as organizações corporativas (compostas de operários especializados) apolíticas, que se recusavam a questionar o capitalismo e, de outro lado, os sindicatos que buscavam agrupar todos os assalariados – e não apenas os profissionais especializados – contra os patrões, procurando abrir uma perspectiva de luta contra o sistema capitalista como um todo. Nesse contexto a construção da AIT era de certa forma o coroamento de um processo de renovação da organização da classe operária, tanto no plano sindical como no plano político; processo no qual a luta por esse sindicalismo novo, de conteúdo revolucionário, em oposição ao sindicalismo corporativo-profissional, tinha lugar destacado. Essa luta ainda tinha plena atualidade na época da fundação da II Internacional, como o refere Engels em seu artigo de 23.5.1890 para o jornal “Arbeiter Zeitung”:

“A primeiro de abril de 1889 deu-se a criação do Sindicato dos Gaseiros e Serventes (Gas Worker’s and General Labourer’s Union) que conta atualmente com cerca de 100.000 aderentes. É sobretudo sob o impulso deste sindicato – cujos aderentes são em grande parte gaseiros no inverno e estivadores no verão – que foi desencadeada a grande greve dos estivadores e que a camada mais baixa dos proletários do Leste de Londres pôs-se em movimento. Com efeito, foi então que um sindicato depois de outro foram fundados entre os operários menos qualificados; e os que já existiam e antes só conseguiam vegetar passaram a expandir-se rapidamente.”

Entretanto, os novos sindicatos diferem bastante dos antigos. Estes só incluem os operários “qualificados” e praticam o exclusivismo: não admitem os operários que não tenham aprendido regulamentarmente uma profissão e criam deste modo condições de corporação sem concorrência. São ricos, e quanto mais ricos mais degeneram em simples caixas de socorro mútuo. São conservadores e nada querem com o socialismo, pelo menos tanto quanto e enquanto isso lhes é possível.

O marxismo, assim como dá fundamento a um tipo particular de partido político, cujo objetivo essencial é a organização da classe proletária para a tomada do poder e a construção de uma nova sociedade sem exploradores, lança também as bases de um novo tipo de organização sindical: o sindicato classista, que se caracteriza fundamentalmente por organizar os assalariados como corpo social oposto à classe burguesa e procurar levá-los além da luta por melhores salários e condições de trabalho, apontando para a necessidade de superação do sistema capitalista.

Pode-se encontrar uma exposição da perspectiva geral que devia ter o novo sindicalismo visualizado por Marx em seu manuscrito sobre o salário, apresentado em anexo à obra “Trabalho assalariado e Capital”, de 1849:

“Penso ter demonstrado que as lutas por salários normais são inseparáveis do sistema de salariato em seu conjunto, que em 99% dos casos os esforços por elevar os salários não são senão tentativas de manter o valor dado ao trabalho e que a necessidade de disputar seu preço com os capitalistas é inerente à condição que o obriga a vender-se como mercadoria.
Ceder, sem coragem, nesse conflito quotidiano com o capital seria perder irremediavelmente a faculdade de lançar-se um dia num movimento mais vasto.
Entretanto, deixando de lado a servidão geral que implica o sistema de salariato, os trabalhadores não devem exagerar o resultado final dessas lutas quotidianas. Não devem esquecer que combatem os efeitos e não as causas, que podem desacelerar a queda mas não mudar a direção desta, que estão aplicando paliativos mas não curando o mal.
Eles não devem, portanto, deixar-se absorver completamente por essas escaramuças inevitáveis que nascem constantemente das dificuldades do capital e das oscilações do mercado. Devem compreender que o sistema atual, com toda a miséria que os faz sofrer, engendra ao mesmo tempo as condições materiais e as formas sociais necessárias para a transformação econômica da sociedade.
Em lugar da palavra de ordem conservadora: ‘Um justo salário por uma justa jornada de trabalho’, eles devem inscrever em sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: abolição do salariato.”
(grifos de Marx)

Seja dito de passagem que a perspectiva de transformação social colocada por Marx é sempre enfatizada como implicando um processo que leve à abolição do sistema de salariato. Marx não podia imaginar que posteriormente sua contribuição teórica seria invocada para justificar um “socialismo” que consiste na redução dos trabalhadores a condição de assalariados de um estado todo-poderoso. É também de Marx a definição do sindicato com instrumento de educação da classe operária (“escola de comunismo” diria Lenin mais tarde, ampliando a ideia original de Marx):

“(…) O objetivo final do movimento político da classe operária é naturalmente a conquista do poder político para si, o que implica necessariamente que, como condição prévia, uma organização suficientemente desenvolvida da classe operária nasça e cresça a partir das próprias lutas econômicas.
Entretanto, para tornar-se político, um movimento deve opor às classes dominantes os operários agindo enquanto classe, para fazê-las ceder ante uma pressão externa. Assim, a agitação é puramente econômica quando os operários tentam, por meio de greves, etc., numa única fábrica ou mesmo num único ramo de indústria, obter dos capitalistas privados uma redução do tempo de trabalho; em troca, ela é política quando arrancam pela força (“erzwingen”) uma lei fixando em oito horas a jornada de trabalho, etc. É dessa maneira que, de todos os movimentos econômicos isolados dos operários, desenvolve-se em toda parte um movimento político, noutros termos, um movimento de classe visando à realização de seus interesses sob uma forma geral, que tenha força de coerção sobre a sociedade inteira. Esses movimentos supõem certa organização prévia, ao mesmo tempo que são por sua vez um meio de desenvolvimento de tal organização.
Ali onde a classe operária ainda não está suficientemente avançada em sua organização para lançar uma campanha decisiva contra a violência coletiva – o poder político – das classes dominantes, é preciso em todo caso que ela seja educada para esse fim por uma agitação incessante contra a política hostil das classes dominantes.”
(Carta a F. Bolte, de 23.11.1871.)

As lutas econômicas eram pois, segundo Marx, uma “escola”, porque faziam avançar a organização do proletariado, cabendo aos revolucionários a tarefa de demonstrar a necessidade de lutar contra a violência política das classes dominantes.

Na mesma linha de raciocínio, Marx considerava que a luta dos trabalhadores por melhorias econômicas devia ser conduzida de modo a levá-los à, compreensão da necessidade de organizar-se politicamente como classe, sob pena de serem eternamente joguetes nas mãos dos lideres políticos burgueses.

Assim, na Inglaterra, a preocupação fundamental dos marxistas era conseguir que a classe operária passasse do nível sindical de organização para o nível político, enviando representantes próprios ao Parlamento. Engels dedica a esse tema uma série de artigos escritos entre 28.5. e 4.6.1881 para o “Labour Standard”, órgão dos sindicatos ingleses:

“(…) Seja como for, a luta entre as duas grandes classes da sociedade torna-se necessariamente uma luta política. Assim foi durante a longa batalha entre a burguesia (ou classe capitalista) e a aristocracia fundiária e é a mesma coisa na luta entre a classe operária e esses mesmos capitalistas.
Grandes sindicatos, agrupando de um a dois milhões de operários, sustentados por secções locais ou associações menores, representam uma força que o governo da classe dirigente, seja liberal ou conservador, não pode deixar de levar em conta.
(…) Além do mais, numerosos sintomas indicam que a classe operária deste país começa a dar-se conta de que há algum tempo está metida no mau caminho. Com efeito, ela começa a compreender que a agitação atual a mantém num círculo vicioso sem saída, porque gira exclusivamente em torno de questões de aumento de salários e de diminuição de horário de trabalho, uma vez que o mal fundamental não reside no baixo nível de salários, mas sim no próprio sistema de salariato. Se esta tomada de consciência se espalhar amplamente no seio da classe operária a posição dos sindicatos deverá mudar consideravelmente: eles não gozarão do privilégio de serem as únicas organizações da classe operária. Ao lado ou acima dos sindicatos de cada ramo de indústria surgirá uma União geral, uma organização política da classe operária em seu conjunto.
Consequentemente, as organizações sindicais fariam bem em considerar os dois pontos seguintes: primeiramente, aproxima-se a grandes passos o momento em que a classe operária deste país reclamará, de modo claro, sua plena participação no Parlamento; em segundo lugar, aproxima-se também o momento em que a classe operária compreenderá que a luta por salários mais altos e menor duração do trabalho – que resume toda a ação sindical atualmente – não é um fim em si, mas sim um meio, sem dúvida eficaz e muito necessário, porém somente um meio, entre muitos outros, para atender a um fim mais alto: a abolição do sistema de salariato em seu conjunto.
Para que o trabalho esteja plenamente representado no Parlamento e para preparar a abolição do sistema salarial, os sindicatos devem ser organizados, não apenas como secções correspondentes a cada ramo de indústria, mas também como corpo único da classe operária. E quanto mais cedo o fizerem melhor será. Não há poder no mundo que possa um dia resistir à classe operária inglesa organizada num corpo único.”

Note-se que o partido proposto por Engels para a classe operária na Inglaterra era um partido baseado nos sindicatos. Tal perspectiva era o resultado natural da concepção marxista da transformação da luta econômica em luta política, como necessidade lógica decorrente do processo geral de organização da classe operária. Marx via uma continuidade completa entre a luta por um sindicalismo classista e a construção da AIT. E, de fato, o desenvolvimento da AIT como organização com base de massas apoiava-se no avanço do processo de renovação do movimento sindical da época. Em 1866, a Resolução sobre os Sindicatos, do I Congresso da AIT, faz um balanço da evolução anterior do movimento sindical e coloca a perspectiva de filiação das sindicatos à AIT:

“A) O passado dos sindicatos.

Os sindicatos nasceram dos esforços espontâneos dos operários em luta contra as ordens despóticas do capital, para impedir ou pelo menos atenuar os efeitos da concorrência dos operários entre si. Eles queriam mudar os termos do contrato de tal modo que pudessem pelo menos elevar-se acima da condição de simples escravos. O objetivo imediato dos sindicatos era, contudo, limitado às necessidades das lutas diárias, a expedientes contra a usurpação incessante do capital, numa palavra, às questões de salário e de horas de trabalho. Essa atividade não é só legítima, ela é necessária. Não se pode renunciar a ela enquanto durar o sistema atual; mais ainda, os sindicatos operários devem generalizar sua ação unindo-se em todos os países. Por outro lado, os sindicatos operários foram insensivelmente formando centros organizadores da classe operária, tal como as comunas e municipalidades da Idade Média formaram para a burguesia. Se os sindicatos são indispensáveis na guerra de escaramuças entre trabalho e capital, eles são ainda mais importantes como força organizada para suprimir e substituir o sistema de trabalho assalariado.

B) Seu presente.

Os sindicatos ocupam-se exclusivamente demais das lutas locais e imediatas contra o capital. Eles não são suficientemente conscientes de tudo o que podem fazer contra o próprio sistema da escravidão assalariada. Eles têm ficado demasiado afastados dos movimentos mais gerais e das lutas políticas. Não obstante, nestes últimos tempos, eles começaram a perceber sua grande missão histórica. Damos como exemplo disso sua participação, na Inglaterra, nos recentes movimentos políticos; a ideia que eles têm de sua própria função nos Estados Unidos; e a resolução seguinte, recentemente adotada pela grande conferência de delegados sindicais em Sheffield: “Esta conferência, apreciando justamente os esforços da Associação internacional dos Trabalhadores por unir numa confederação fraterna os operários de todos os países, recomenda muito seriamente a todas as sociedades representadas filiar-se a essa organização, na convicção de que a Associação internacional forma um elemento necessário ao progresso e à prosperidade de toda a comunidade operária.

C) Seu futuro.

Ao lado de sua obra imediata contra as manobras perniciosas do capital, eles devem agora agir como focos de organização da classe operária para o grande objetivo de sua emancipação radical. Eles devem ajudar todo movimento social e político tendendo nessa direção. Considerando-se e agindo como campeões e representantes de toda a classe operária, eles conseguirão agrupar em seu seio todos os que ainda não são organizados; ocupando-se das indústrias mais miseravelmente pagas, como a indústria agrícola, onde as condições excepcionalmente desfavoráveis têm impedido toda resistência organizada, eles farão nascer nas grandes massas a convicção de que, em lugar de estarem circunscritos a limites estreitos e egoístas, seu objetivo tende à emancipação de milhões de proletários pisoteados.”

A AIT via possibilidades grandiosas para o desenvolvimento da organização dos trabalhadores. A julgar pela história da luta de classes, tal visão não estava fora da realidade, pelo menos levando-se em conta a força e a importância dos processos revolucionários ocorridos posteriormente. Jogando-se a fundo no impulsionamento dessas possibilidades, a AIT não apenas buscava conquistar a filiação de sindicatos inteiros já existentes, como também dava a seus militantes a tarefa de criar novos sindicatos e federá-los entre si, na perspectiva de generalizar a luta contra o capital. Essa tarefa é categoricamente reafirmada na Resolução do IV Congresso da AIT (1869):

“O Congresso declara que todos os operários devem esforçar-se com energia para criar sindicatos nos diversos ofícios.
Quando tais sindicatos forem fundados, as secções, os grupos filiados e as centrais deverão ser informados, a fim de que possam dedicar-se à criação de federações nacionais de sindicatos. Essas federações serão encarregadas de reunir tudo que concerne seu ramo de indústria, de debater em comum as medidas a fim de operar sua aplicação e seu sucesso, até que o atual sistema de salariato seja substituído pela associação do trabalho livre.
O Congresso encarrega a Conselho geral de assegurar a ligação internacional entre os sindicatos.”

O papel dos sindicatos como instrumentos de educação da classe operária, assim como sua atividade no sentido de estabelecer a ligação entre os movimentos econômicos e políticos, são dois elementos básicos da prática marxista no movimento sindical. Marx, particularmente, afirmava com grande ênfase a ligação indissolúvel entre os movimentos sindical e partidário dos assalariados. Pode-se dizer que esse principio constitui um dos elementos mais importantes do sindicalismo revolucionário, tal como era concebido por Marx, Este foi sempre bastante claro em suas afirmações sobre o assunto. Como amostra disso pode-se tomar a Resolução sobre a Ação Política da AIT, por ele redigida em setembro da 1871:

“Considerando que contra a violência coletiva das classes proprietárias o proletariado não pode atuar como classe a não ser que se constitua em partido político distinto, em oposição a todas as antigas formações de partidos das classes possuidoras; que essa constituição do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e de seu objetivo final – a abolição das classes; que é preciso que a união das forças da classe operária já realizada pelas lutas econômicas sirva igualmente de alavanca para a massa dessa classe em sua luta contra o poder político de seus exploradores: a conferência lembra aos membros da Internacional que, no estado de luta da classe operária, sua atividade econômica e sua atividade política são inseparáveis.”

Tendo em mente não apenas as posições de princípio da AIT sobre os sindicatos, mas também sua prática nas condições do movimento operário da época, é fácil entender a posição de Marx e Engels sobre as relações entre o Conselho geral da AIT e o Conselho regional da Inglaterra. Opondo-se a propostas dos socialistas franceses, Marx e Engels sempre se posicionaram firmemente contra as tentativas de separar a direção geral da AIT da direção regional inglesa, principalmente devido à importância que davam ao nível de organização sindical atingido pelos trabalhadores ingleses. O que mostra a importância do movimento sindical classista para a sustentação da AIT. E mostra também que Marx e Engels não viam com bons olhos uma organização internacional dos trabalhadores estruturada como uma espécie de comando geral da vanguarda política, funcionando exteriormente e acima das organizações de massa e do proletariado. É porque partiam dessa concepção de organização operária internacional que Marx e Engels consideravam indispensável que a direção da AIT se apoiasse diretamente na principal base de massas da organização. Veja-se o que diz Marx num escrito de 1.1.1870, voltado a convencer os demais dirigentes da AIT da validade de suas posições sobre esse ponto:

“(…) Embora a iniciativa revolucionária partirá provavelmente da França, somente a Inglaterra pode servir de alavanca de uma revolução seriamente econômica. Com efeito, é o único país onde não há mais grandes massas camponesas e onde a propriedade fundiária está concentrada em poucas mãos. É o único país onde a forma capitalista, isto é, o trabalho combinado em grande escala sob a dominação dos capitalistas, tomou conta de quase toda a produção. É o único país onde a grande maioria da população consiste em operários assalariados. É o único país onde a luta de classe e a organização da classe operária por meio dos sindicatos adquiriu certo grau de maturidade e de universalidade.
O Conselho geral, encontrando-se na feliz posição de ter diretamente em suas mãos essa grande alavanca da revolução proletária – os sindicatos – cometeria uma loucura, para não dizer crime, se a deixasse cair em mãos puramente inglesas.
Os ingleses têm toda a matéria necessária à revolução social. O que lhes falta é o espírito generalizador e a paixão revolucionária. Somente o Conselho geral pode suprir isso e assim acelerar o movimento verdadeiramente revolucionário neste país e, consequentemente, em toda parte.”

Algumas correntes políticas do movimento operário têm tentado apoiar-se em escritos como o que vem de ser citado para justificar práticas que consistem essencialmente em subordinar a organização sindical à organização partidária. Trata-se de um erro, que contradiz frontalmente aspectos fundamentais da prática efetivamente realizada e defendida por Marx.

A AIT, pelo próprio método de sua construção, baseava-se em organizações sindicais; era, por outro lado, uma organização internacional bastante decentralizada, agrupando organizações filiadas de outros países que dispunham de grande autonomia, às vezes comportando-se praticamente como organizações independentes; e as relações praticadas entre os sindicatos filiados e sua instância política, a AIT, eram de colaboração e de complementação de suas respectivas atividades, não de subordinação. Pode-se constatar isso pelo fato de que, na intervenção em movimentos grevistas, a AIT entregava à federação de sindicatos filiados a tarefa de julgar as condições de legitimidade e de oportunidade das greves, de modo que, no terreno da atividade propriamente sindical e das lutas econômicas, cada secção sindical dispunha de ampla liberdade de ação. É o que deixa perceber a declaração do III Congresso da AIT (1868) sobre os movimentos grevistas:

“O Congresso declara:

  1. Que as greves não são um meio de emancipação completa do trabalhador, mas que elas são uma necessidade na situação atual de luta entre o trabalho e o capital.
  2. Que convém submeter as greves a certas regras de organização, de oportunidade e de legitimidade.
  3. No que diz respeito à organização das greves: nos ramos de produção em que ainda não há sindicatos, sociedades de resistência e de mútuo socorro, é preciso criá-los, em seguida solidarizar entre si todos os sindicatos de todas as profissões e de todos os países, instituindo, em cada federação local, uma caixa destinada a sustentar os grevistas. Numa palavra, é preciso continuar nesse sentido a obra empreendida pela Associação internacional dos Trabalhadores e esforçar-se por fazer o proletariado entrar em massa nesta Associação.
  4. No que diz respeito à oportunidade e à legitimidade das greves, é preciso nomear na federarão uma comissão de delegados dos diversos sindicatos e sociedades operárias, que julgaria se é o caso de organizar uma greve. De resto, é necessário deixar, para o modo de formação desse conselho de arbitragem, certa liberdade às diversas secções, segundo os costumes, os hábitos e as legislações particulares.”

Fica aqui bastante evidente o papel fundamental de ajudar os movimentos grevistas. Não passava pela cabeça dos dirigentes da AIT a ideia de tomar decisões sobre as reivindicações econômicas e a organização das greves passando por cima das federações, que agrupavam as diversas categorias profissionais.

II

1º Congresso Operário Brasileiro, em abril de 1906
1906: o 1º Congresso Operário Brasileiro, no Rio de Janeiro.

A partir do período de decadência da II Internacional, o aguçamento das contradições internas do movimento operário fez surgir dificuldades novas nas relações entre sindicatos e partidos políticos do proletariado. Ao mesmo tempo, na Rússia tsarista a social-democracia viu-se obrigada a assumir a tarefa de organizar sindicatos clandestinos, uma vez que toda forma de organização operária era proibida no país. Isso determinou o surgimento de certas práticas vistas na época como particularidades do movimento operário russo. Posteriormente, tais práticas e a elaboração teórica a elas ligada influenciaram bastante a discussão sobre a questão sindical no mundo inteiro, devido à importância adquirida pela direção do Partido bolchevique, a partir da vitória da revolução na Rússia em 1917.

A posição de princípio colocada pelo Partido Bolchevique em relação à questão sindical partia da posição de Marx e da AIT, como se pode comprovar à leitura do projeto de revolução sobre os sindicatos, redigido por Lenin para ser apresentado ao congresso de unificação dos socialistas russos (1906):

“Visto que:

  1. A social-democracia sempre reconheceu a luta econômica como uma das partes integrantes da luta de classe do proletariado;
  2. como mostra a experiência de todos os países capitalistas, sindicatos amplos constituem a forma de organização da classe operária mais racional para engajar a luta econômica;
  3. no momento atual observa-se na Rússia uma ampla aspiração das massas a unir-se nos sindicatos;
  4. luta econômica pode conduzir a uma melhoria durável da situação das massas operárias e ao reforço de sua organização de classe autêntica se, e somente se, essa luta for associada de maneira justa à luta política do proletariado.

Nós reconhecemos e nos propomos no congresso a reconhecer que:

  1. Todas as organizações do Partido devem facilitar a formação de sindicatos sem partido e encorajar a neles entrar os membros do Partido representantes das profissões interessadas;
  2. O Partido deve tender por todos os meios a educar os operários militantes nos sindicatos no espírito de uma compreensão ampla da luta de classes e das tarefas socialistas do proletariado, a fim de conquistar na prática, por sua atividade, um papel dirigente nesses sindicatos e, em fim, fazer de modo que estes possam, em certas condições, juntar-se diretamente ao Partido sem exclusão de seus membros sem partido.”

Nos termos em que está redigido, o projeto de resolução não foge ao espírito da AIT, que buscava conquistar a filiação dos sindicatos. A parte que Lenin queria enfatizar em seu projeto era justamente a conclusão, que aponta para os sindicatos a perspectiva de “juntar-se diretamente” ao partido social-democrata russo. Esse ponto adquirira importância particular na época, porque havia surgido na social-democracia europeia uma corrente de pensamento propondo a “neutralidade” dos sindicatos, contra a tese da “ligação” destes às organizações políticas. No ano seguinte (1907) essa questão foi debatida no Congresso socialista internacional de Stuttgart, que se manifestou majoritariamente a favor da posição de princípio defendida pelos bolcheviques. Num artigo escrito em setembro desse ano Lenin faz seu relato das decisões tomadas no Congresso:

“Em Stuttgart a questão foi colocada, basicamente, da seguinte maneira: neutralidade ou relações sempre mais estreitas dos sindicatos com o partido? O Congresso socialista internacional, como pode ver o leitor examinando sua resolução, pronunciou-se a favor da aproximação entre os sindicatos e o partido. A resolução também não comporta a menor palavra, nem a propósito de neutralidade nem a propósito de não-ligação dos sindicatos ao partido.
Kautsky, que na social-democracia alemã tornara-se partidário de tal aproximação e erguera-se contra a ideia de neutralidade favorecida por Bebel tinha perfeitamente o direito de proclamar, em seu relatório do Congresso de Stuttgart dirigido aos operários de Leipzig (‘Vorwärts’ nº 209, 1907): ‘A resolução do Congresso de Stuttgart diz tudo o que nos é necessário. Ela põe um termo definitivo à noção de neutralidade.’
Clara Zetkin escreve de seu lado: ‘Em principio não se encontrou mais pessoa alguma (em Stuttgart) que fosse contra a tendência histórica fundamental da luta de classe proletária, que é de ligar o combate político e o combate econômico, de agrupar tão estreitamente quanto possível as organizações de uma e outra frente numa força unida da classe operária socialista. Somente o camarada Plehanof, representante dos social-democratas russos’ (teria sido melhor dizer representante dos mencheviques, que o tinham enviado com a missão de defender a ‘neutralidade’), assim como a maioria da delegação francesa, aplicaram-se a justificar, servindo-se de argumentos bastante infelizes, uma certa limitação desse princípio, referindo-se às particularidades de seu país.’ Mas a esmagadora maioria do congresso pronunciou-se por uma política decidida de união da social-democracia e dos sindicatos.”

Mas a homogeneidade entre as posições de Lenin e as de Kautsky e Clara Zetkin não era perfeita. Em polêmica com o jornal “Znamia Trudá” (órgão central do Partido Socialista-Revolucionário russo), Lenin escreve em 1908 sobre a questão sindical, apresentando as principais posições em discussão no movimento operária russo, tal como haviam sido defendidas num comício unitário realizado em novembro de 1905:

“O birô de Moscou, que foi encarregado de designar dentre seus membros o birô central, a quem caberá convocar um congresso (dos sindicatos), organizou um grande comício de operários filiados aos sindicatos no Teatro Olímpia. Os mencheviques defenderam a ideia de uma definição marxista clássica e rigorosamente ortodoxa dos fins do partido e dos sindicatos. “A missão do Partido social-democrata consiste em implantar o regime socialista, suprimindo as relações capitalistas; a dos sindicatos consiste em melhorar as condições de trabalho dentro das marcos do regime capitalista, a fim de conseguir condições de venda da força de trabalho vantajosas para os operários”; daí se pretendia concluir sobre a independência dos sindicatos em relação ao Partido e a necessidade de agrupar neles “todos os operários de cada profissão”.
Os bolcheviques demonstraram que, atualmente, a separação entre a política e o movimento sindical não pode ser estabelecida de modo rigoroso e por isso concluíam que “deve haver uma estreita união entre o Partido social-democrata e os sindicatos, que devem ser dirigidos por aquele”. Os socialistas-revolucionários, finalmente, exigiram uma rigorosa independência dos sindicatos em relação ao Partido, para evitar a divisão no seio do proletariado, mas rejeitaram qualquer limitação das tarefas e da atividade dos sindicatos a uma esfera estreita, formulando essa tarefa como uma luta contra o capital em toda extensão e, por conseguinte, como uma luta tanto econômica como política.”
(Artigo do jornal “Proletarii” nº 22, de 19.2(3.3).1908.)

Aqui a posição dos bolcheviques é apresentada com a nuance (em relação a Marx) de que, além de haver “estreita união” entre partido e sindicatos, estes deveriam ser “dirigidos” por aquele. Na verdade a nuance de Lenin era em grande parte uma constatação da realidade na Rússia, uma vez que ali, sendo os sindicatos organizados clandestinamente pelos militantes das organizações políticas, sua “neutralidade”, por mais que se quisesse afirmá-la, nunca passaria de uma figura de retórica. Porém uma coisa é a prática dos bolcheviques, adaptada às condições da luta de classes na Rússia tsarista, outra coisa são os princípios gerais do marxismo quanto à relação entre sindicato e partido.

Bastante significativo, em relação a esse problema, é o que afirma Lenin, no mesmo artigo de polêmica supracitado, sobre a evolução dos dados da questão sindical da época de Marx à época em que ele próprio escrevia:

“O ‘x’ da questão está em que existem, em cada país capitalista, um partido socialista e certos sindicatos e nossa tarefa consiste em determinar as relações fundamentais entre eles. Os interesses de classe da burguesia originam, inevitavelmente, o esforço em circunscrever os sindicatos à atividade miúda e estreita no marco do atual regime, em afastá-los de qualquer vinculação com o socialismo, e a teoria da neutralidade é a cobertura ideológica desse afã da burguesia. Os revisionistas no seio dos partidos social-democratas sempre abrirão caminho para si, de um ou de outro modo, na sociedade capitalista.
Naturalmente, na fase primária da movimento operário político e sindical na Europa, podia-se defender a neutralidade dos sindicatos, como meio de ampliar a base inicial da luta proletária, numa época em que ela estava relativamente pouco desenvolvida e não existia a influência burguesa sistemática sobre os sindicatos. Atualmente, do ponto de vista da social-democracia internacional, já é completamente inoportuno pregar a neutralidade dos sindicatos.”

A alusão de Lenin à época de Marx é confusa nesse artigo. Marx nunca defendeu a neutralidade dos sindicatos no sentido da posição de Plehanof. Portanto, não há razão para fazer a “concessão” de que naquela época “se podia defender a neutralidade dos sindicatos”. Para Marx, a autonomia das organizações sindicais não era contraditória com sua filiação à AIT. Essa posição tinha por base a visão do movimento sin­dical como primeiro momento do processo geral de organização da classe operária, o que implicava, em primeiro lugar, o respeito às formas de organização já alcançadas no desenvolvimento do proletariado como classe, em segundo lugar, implicava a intervenção consciente dos militantes da AIT no processo de educação política que se dá na luta dos sindicatos, procurando levá-los à adoção da perspectiva socialista. A AIT construiu-se nessa luta, na qual a conquista de novas filiações de sindicatos estava integrada na expansão da adesão individual dos trabalhadores à causa do socialismo e de sua organização política internacional.

A posição marxista sobre a questão sindical obrigava a uma prática radicalmente democrática no movimento operário, com o objetivo de desarmar os preconceitos e as resistências dos velhos sindicalistas, e que também obrigava ao absoluto respeito à autonomia dos sindicatos. Por exemplo, na preparação do Congresso operário internacional de 1891, já no processo de construção da II Internacional, Engels preocupa-se em concretizar um movimento de ampla unidade, abrangendo as principais forças do movimento sindical. Verificando que os socialistas se encontravam diante de uma articulação internacional já em andamento, impulsionada pelos possibilistas (partidários da restrição das reivindicações às conquistas econômicas “possíveis” e que contavam principalmente com o apoio dos sindicatos organizados por profissões), Engels propõe um congresso unitário, exigindo, porém, o mais estrito respeito à democracia operária, como base da unidade proposta:

“No Congresso dos Sindicatos ingleses em Liverpool (setembro de 1890), o Conselho nacional do Partido operário belga convidou os sindicatos ao congresso internacional que deverá ser realizado no próximo ano, na Bélgica. Os belgas haviam sido encarregados, pelo congresso dos possibilistas, de convocar um congresso internacional na Bélgica. O Congresso marxista (utilizo este adjetivo por concisão) tinha dado por missão aos belgas, assim como aos suíços, convocar o congresso somente em comum: o lugar do congresso ainda não foi fixado. Na medida em que não se trata de uma confusão intencional, os belgas convidaram, portanto, os ingleses para o congresso dos possibilistas, o único congresso que foram encarregados de preparar. E os ingleses aceitaram com entusiasmo. Quais são para nós as condições indispensáveis?

  1. Que o congresso comum seja convocado pelos mandatários dos dois congressos de 1889. Os belgas o convocarão em virtude do mandato possibilista; e os belgas e suíços o convocarão em comum, em virtude de nosso mandato. A forma dessa convocação fica por ser determinada.
  2. Que o congresso seja seu próprio senhor. Os regimentos internos, as ordens do dia e as resoluções dos congressos precedentes não existem para ele. Ele determina seu próprio regimento interno, o modo de controle dos mandatos e sua ordem do dia, sem deixar-se ligar as mãos por qualquer precedente. Nenhum comitê – que seja nomeado por um congresso precedente ou que se tenha constituído no curso dos debates de unificação – terá direito de amarrar o congresso ao que quer que seja.
  3. As condições para a representação das diversas sociedades operárias e as proporções nas quais serão representadas deverão ser fixadas previamente (seria desejável fazer proposições concretas sobre este ponto, mas não cabe a mim fazê-lo).
  4. Um comitê, cuja composição deve ser determinada, será encarregado de preparar um projeto de regimento interno e de modo de controle dos mandatos assim como um projeto de ordem do dia, que será necessário submeter à aprovação do congresso.” (Carta confidencial a Charles Bonnier, setembro de 1890.)

Chama a atenção nessa carta o quanto estava arraigada no pensamento de Engels a concepção de que o processo de organização do proletariado como classe (nos terrenos sindical e político) devia ser o mais unitário possível, não aceitando qualquer exclusão “a priori”, mesmo dos setores mais atrasados do movimento sindical. Evidentemente, nesse contexto, não podia ter lugar uma prática de subordinação dos sindicatos às direções partidárias; porém tampouco podia ter lugar uma neutralidade dos sindicatos, no sentido de sua separação do movimento socialista. Contra a tese menchevique e socialista-revolucionária da “neutralidade”, Lenin podia apoiar-se em Marx e Engels, sem qualquer ressalva.

Aparentemente a questão da neutralidade dos sindicatos fora complicada, na discussão entre os socialistas russos, pela tendência dos bolcheviques a afirmar a subordinação dos sindicatos ao partido, não apenas como uma adaptação às condições particulares vigentes na Rússia tsarista, mas sim como uma inovação de caráter universal em relação às concepções e à prática de Marx e da AIT.

III

Gravura de Lenin. Fonte: acervo do Cemap

A discussão sobre as relações entre sindicato e partido complicou-se ainda mais após a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia.

Para começar, surgiram os problemas ligados à participação dos sindicatos na luta pela reedificação da economia soviética após a guerra civil, que era uma situação completamente nova em relação à experiência da AIT e da II Internacional. Em seguida, surgiram os problemas ligados à burocratização do estado soviético (fenômeno que chama a atenção de Lenin já em 1920).

Atualmente, com a visão de conjunto permitida pelo tempo, pode-se perceber com clareza que a posição assumida por Lenin diante dos problemas novos foi sem dúvida influenciada pelos métodos de ação formados no movimento operário russo sob o regime tsarista. Quando se acendeu entre os bolcheviques a discussão sobre como trabalhar com os sindicatos na Rússia soviética, onde o poder de estado estava nas mãos do Partido comunista, Lenin, contrapondo-se a algumas propostas (de Trotsky e outros) que visavam a ligar os sindicatos mais diretamente aos organismos estatais de direção econômica, afirma a necessidade de manter os sindicatos num lugar específico, como auxiliares em relação a esses organismos estatais e, ao mesmo tempo, como instrumentos de defesa dos interesses imediatos dos trabalhadores.

Não é objeto do presente texto entrar na discussão sobre se os sindicatos deveriam ou não ocupar um lugar nas instituições de direção econômica da Rússia soviética e que lugar seria esse. Interessa apenas registrar que, por ocasião dessa polêmica interna do Partido Comunista russo, Lenin estendeu um pouco mais sua nuance própria em relação à posição de Marx sobre a questão sindical. A interpretação dos sindicatos como constituindo um nível intermediário entre o proletariado desorganizado (ou apenas organizado em bases profissionais-corporativistas) e o proletariado organizado em partido – interpretação válida em termos marxistas – é ampliada para definir os sindicatos como meios de ligação entre a vanguarda (o partido) e as massas. Em seu discurso “Os sindicatos, a situação atual e os erros de Trotsky”, Lenin explica:

“No sistema da ditadura do proletariado os sindicatos se situam, se assim se pode dizer, entre o Partido e o poder de Estado. A ditadura do proletariado é inevitável na passagem para o socialismo, mas ela não se exerce por meio da organização agrupando todos os operários da indústria. Por que? Podemos ler a respeito disso as teses do II Congresso da Internacional Comunista sobre o papel do partido em geral. Não me deterei aqui sobre esse ponto. As coisas se passam assim: o Partido, de certa forma, absorve a vanguarda do proletariado e é ela que exerce a ditadura do proletariado. Mas sem uma base como a dos sindicatos é impossível exercer a ditadura, desempenhar as funções do Estado. É preciso assumi-las pelo canal das diversas instituições, que também são de um tino novo: por meio do aparelho dos sovietes. Em que essa situação é nova, do ponto de vista das conclusões práticas? É que os sindicatos criam a ligação entre a vanguarda e as massas, que seu trabalho quotidiano tem o efeito de convencer as massas, as que pertencem à única classe capaz de fazer-nos passar do capitalismo ao comunismo. Aí está um primeiro aspecto da questão. Por outro lado, os sindicatos são o ‘reservatório’ do poder de Estado. É isso que eles são na época de transição do capitalismo ao comunismo. De modo geral, não se poderia realizar essa transição sem que a hegemonia pertença à única classe instruída pelo capitalismo para a grande produção e que é a única já rompida com os interesses de pequeno proprietário. Mas é impossível exercer a ditadura do proletariado por meio da organização que a agrupa por inteiro. Porque não é somente aqui, num dos países capitalistas mais atrasados, mas também em todos os outros países capitalistas, que o proletariado é tão fragmentado, humilhado, em parte corrompido (precisamente pelo imperialismo em certos países), que a organização que o agrupa por inteiro é incapaz de exercer diretamente sua ditadura. Somente pode fazê-lo a vanguarda que absorveu a energia revolucionária da classe. Forma-se assim uma espécie de engrenagem. Esse mecanismo constitui a própria base da ditadura do proletariado.
Mas isso não é tudo. O programa de nosso partido, esse programa que o autor do
‘ABC do Comunismo’ (Buharin) conhece melhor do que ninguém, mostra que nosso Estado é um Estado operário apresentando uma deformação burocrática. É essa a triste – como dizer? – etiqueta que tivemos que afixar-lhe. É essa a transição em toda sua realidade. E então, num Estado que se formou em tais condições concretas, os sindicatos nada têm a defender? Pode-se dispensá-los da defesa dos interesses materiais e morais do proletariado organizado por inteiro? Seria um raciocínio completamente falso, do ponto de vista teórico. Um raciocínio que nos levaria ao domínio da abstração ou do ideal que atingiremos daqui a 15 ou 20 anos, sendo que, além do mais, não estou seguro de que o atingiremos nesse prazo. Estamos diante de uma realidade que conhecemos bem, desde que não nos deixemos embriagar, não nos deixemos arrastar por discursos de intelectuais ou raciocínios abstratos, ou ainda, pelo que parece às vezes ser uma ‘teoria’, mas que não é senão um erro, uma falsa apreciação das particularidades do período de transição. Nosso Estado é hoje tal que o proletariado organizado por inteiro deve defender-se e devemos utilizar essas organizações operárias para defender os operários contra seu Estado, assim como para que os operários defendam nosso Estado.” (Discurso pronunciado em seção comum dos delegados do 8º Congresso dos Sovietes, dos membros do Conselho Central dos Sindicatos da Rússia e dos membros comunistas do Conselho dos Sindicatos da Cidade de Moscou, em 30.12.1920.)

A importância que Lenin dá às deformações burocráticas do Estado soviético era suficiente para colocá-las como justificativa principal da necessidade de manter para os sindicatos um papel de defesa dos trabalhadores contra o Estado. Lenin acreditava que as deformações burocráticas regrediriam com o tempo (sem ter certeza de que 15 ou 20 anos fossem suficientes para chegar a uma situação “ideal”); supostamente, a partir dessa evolução, os sindicatos se tornariam menos necessários como instrumentos de defesa. Talvez por isso ele não tenha visto contradição em colocar, no mesmo discurso, a fórmula do sindicato como engrenagem transmitindo os impulsos da vanguarda (que teria a tarefa de exercer a ditadura do proletariado) à massa dos trabalhadores. Essa imagem correu mundo sob a forma da teoria do sindicato como “correia de transmissão” entre o Partido Comunista e os trabalhadores, que passou a ser aplicada mais tarde pelos partidos comunistas stalinizados em toda parte.

Essa polêmica interna do Partido Comunista russo passou. Veio logo em seguida a Nova Política Econômica (NEP), criando uma situação nova, que colocou em segundo plano os problemas do período anterior. Mas a questão das relações entre os sindicatos e o Partido, que se tornara partido único e dono absoluto do aparelho de Estado e no qual desde março de 1921 não havia mais direito à formação de frações, reapareceu de modo mais agudo, como consequência do próprio desenvolvimento da NEP. Esta acarretou a reintrodução de normas capitalistas de organização das empresas estatais e fez aparecer um desemprego mais difícil de suportar do que o do período anterior (do “comunismo de guerra”), uma vez que foi desmontada a rede de distribuição gratuita de alimentos. Em 1922 Lenin volta a abordar a questão sindical em seu projeto de resolução do Comitê Central (adotado com poucas modificações em 12.1.1922) “O Papel e as Tarefas dos Sindicatos nas Condições da NEP”, visto que se tornara necessário orientar os militantes comunistas em sua atividade nos sindicatos sob a nova situação econômica. As orientações propostas tentam levar em conta a importante contradição que se desenvolvia no relacionamento entre o Estado soviético e a massa do proletariado, em função da aplicação de critérios de rentabilidade máxima nas empresas estatais:

“(…) A passagem das empresas do Estado à autonomia financeira está inevitável e indissoluvelmente ligada à nova política econômica e, num futuro muito próximo, esse tipo de gestão se tornará infalivelmente preponderante, se não exclusivo. De fato, isso significa uma situação em que a liberdade de comércio é autorizada e se desenvolve, em que as empresas estatais voltam de modo notável a funcionar em bases comerciais capitalistas. Essa circunstância, acrescentando-se à necessidade imperiosa de aumentar a produtividade do trabalho, de obter de cada empresa estatal uma gestão não deficitária e mesmo lucrativa e, juntando se a isso, o apego legítimo ou mesmo excessivo aos interesses particulares da empresa, não deixará de engendrar certa contradição de interesses entre a massa dos operários e os gerentes, os administradores das empresas estatais ou os serviços administrativos que delas relevam. Também é dever absoluto dos sindicatos defender os interesses de classe do proletariado e das massas trabalhadoras ante seus empregadores, mesmo em relação a empresas estatais.”

Lenin volta a afirmar o dever de defesa dos interesses dos trabalhadores por parte dos sindicatos. Entretanto, essa concepção do sindicato como defensor dos trabalhadores não se acomoda bem com a do sindicato como “engrenagem”. Por isso, Lenin vê-se obrigado a enquadrar suas diretrizes num sistema por meio do qual tenta evitar o surgimento de impasses entre, de um lado, a massa dos trabalhadores agrupada nos sindicatos (na medida em que estes funcionassem de verdade) e, de outro, o Estado soviético.

No mesmo projeto de resolução, Lenin continua seu raciocínio:

“De tudo que precede resulta que surgem certas contradições entre as diversas tarefas sindicais. Por um lado, seu principal método de ação reside na persuasão e na educação; por outro, eles tampouco podem recusar-se, como associados ao poder estatal, a exercer uma coerção. Por um lado, eles têm como tarefa essencial a defesa dos interesses das massas trabalhadoras, considerada em termos mais imediatos e mais fiéis; por outro, eles não podem, enquanto associados ao poder estatal e responsáveis pela edificação de toda a economia nacional, abster-se de apelar aos meios de pressão. Por um lado, eles devem agir militarmente, porque a ditadura do proletariado é a guerra de classes em toda sua dureza, em toda sua aspereza, em todo seu encarniçamento; por outro, é justamente em relação aos sindicatos que os métodos de ação especificamente militares são menos aplicáveis. Por um lado, eles devem saber adaptar-se ao nível das massas; por outro, não devem, em hipótese alguma, acomodar-se aos preconceitos e ao atraso das massas; eles devem, pelo contrário, esforçar-se sem descanso por elevá-las mais e mais. E assim por diante.
Essas contradições nada têm de surpreendentes e serão inevitáveis durante várias dezenas de anos. Pois, em primeiro lugar, são contradições que se encontram em toda escola, seja qual for. Ora, os sindicatos são a escola do comunismo. Não se pode esperar menos que várias dezenas de anos para que a maioria dos trabalhadores atinja o desenvolvimento superior que fará desaparecer todo vestígio e toda lembrança de ‘escola’ para adultos, Em segundo lugar, enquanto existirem sequelas do capitalismo e da pequena produção, em qualquer sistema social, serão inevitáveis as contradições entre essas sequelas e os germes do socialismo.
Disso decorre uma dupla conclusão prática. A primeira é que, para que os sindicatos obtenham bons resultados, não basta que eles compreendam bem sua missão; não basta que sejam corretamente organizados: é necessário ainda que eles possuam uma fineza especial, que saibam abordar as massas de maneira particular em cada caso concreto e consigam assim com um mínimo de choques, elevar as massas a um nível superior, do ponto de vista cultural, econômico ou político.
Segunda conclusão: essas contradições vão inevitavelmente engendrar conflitos, discórdias, choques, etc. Donde a necessidade de uma instância superior, investida de suficiente autoridade para decidir imediatamente os casos litigiosos. Essa instância é o Partido Comunista e a união internacional dos Partidos Comunistas de todos os países, a Internacional Comunista.”

Vê-se que as inovações de Lenin em relação à teoria marxista sobre a questão sindical não superaram os padrões de comportamento herdados da militância na Rússia tsarista: o partido não apenas como vanguarda, mas também como “instância superior”.

Contradições são inevitáveis em todo sistema social; e tornam-se mais visíveis durante um processo revolucionário. Nada de estranho em que contradições na própria revolução sejam reconhecidas e postas a nu; pelo contrário isso é altamente positivo e demonstra que no partido comunista russo em 1922 ainda estavam vivas suas raízes marxistas. O estranho é que o marxismo seja chamado a “resolver” contradições através de um sistema de hierarquias. Mesmo tendo claramente definido uma deformação burocrática no Estado soviético, Lenin continuava depositando uma confiança ilimitada na capacidade de autocorreção do Partido Comunista, capacidade que foi desmentida pelos fatos posteriores.

IV

Logotipo da Internacional Sindical Vermelha e boletim de fevereiro de 1922
Logotipo da ISV e boletim de fevereiro de 1922.

No período de expansão da II Internacional o movimento sindical, embora sempre constituísse organizações distintas dos partidos socialistas, tinham com estes relações que variavam de um país para outro. Na Alemanha, o Partido social-democrata adota a partir de1906 a norma da consulta obrigatória dos sindicatos antes de qualquer decisão que os envolvesse; e assim os dirigentes sindicais passaram a ter um peso importante nas decisões da social-democracia alemã. Nos demais países havia uma colaboração regular entre os partidos social-democratas e os sindicatos surgidos sob sua influência, num quadro geral de estreita ligação entre ambas formas de organização.

A vitória da revolução proletária na Rússia e a fundação da III Internacional acarretaram uma reorganização geral do movimento operário, com o surgimento de partidos novos, tanto através da adesão de organizações inteiras à nova internacional como da cisão de partidos antes filiados à internacional social-democrata. Essa reorganização geral não poderia deixar de atingir o movimento sindical, como de fato ocorreu.

Ao mesmo tempo, um dos resultados da Revolução de Outubro foi que, embora as posições do Partido comunista russo sobre a questão sindical fossem em grande parte respostas específicas aos problemas enfrentados pelo Estado soviético, o caminho ali seguido nas relações entre partido e sindicato influenciava fortemente a política da III Internacional a respeito. Pode-se constatar isso no debate desencadeado pelos militantes comunistas no movimento sindical dos países capitalistas durante sua tentativa de criação de uma central sindical internacional ligada à III Internacional: a Internacional Sindical Vermelha (ISV).

Com a deflagração da Grande Guerra de 1914-1918, a adesão de muitos partidos socialistas ao esforço de guerra dirigido pela burguesia fez com que se diferenciassem correntes contrárias a tal adesão, tanto nos partidos como nos sindicatos. O movimento de resistência contra a capitulação dos partidos socialistas ante as burguesias dos respectivos países desenvolveu-se ainda mais após a fundação da III Internacional. Esta construiu-se apoiando-se principalmente nos movimentos de resistência à guerra imperialista. Uma parte da base militante dos partidos socialistas, descontentes com a política de colaboração de classes de suas direções, aderiram rapidamente à III Internacional. Os sindicalistas, porém, não aderiram rapidamente. Tentaram, durante vários anos, manter-se independentes tanto da II como da III Internacional, sem deixar de militar nas centrais sindicais tradicionais onde constituíam minorias organizadas e, em alguns casos, chegaram a dominar sindicatos inteiros.

Para impulsionar o desenvolvimento dessas correntes sindicais classistas e tentar centralizar suas lutas, a III Internacional propôs a organização de um movimento sindical internacional, que mais tarde resultou na fundação da ISV. O I Congresso desta realizou-se em 1921, em Moscou. Alfred Rosmer, um de seus principais articuladores e membro do movimento sindicalista revolucionário francês, conta como se desenvolveram as discussões sobre a questão da autonomia da ISV em relação à III Internacional:

“O trabalho preparatório que se havia desenvolvido durante um ano (1920-1921) tivera por objetivo a realização do programa fixado quando da constituição do Conselho internacional provisório (dos sindicatos): unir numa só internacional as organizações sindicais já em condições de aderir em bloco (à proposta de criação da ISV) com as minorias dos sindicatos reformistas, agrupadas em torno do princípio da adesão. Os progressos constantes dessas minorias – elas vinham crescendo continuamente em número e influência – permitiam esperar que elas logo seriam capazes de vencer a resistência dos chefes reformistas e arrastar organizações inteiras para a nova internacional sindical.
Contrariamente a tais previsões otimistas, (as discussões sobre o relacionamento entre sindicato e partido) apresentava-se como muito difícil. Durante os debates e controvérsias havia sido lançada a expressão ‘ligação orgânica’ das duas internacionais (a III Internacional e a ISV) e era em torno dessa fórmula que a polêmica girava. Na França, os chamados ‘sindicalistas puros’ deram-lhe o sentido de uma subordinação dos sindicatos ao partido, coisa absolutamente inaceitável para os sindicalistas revolucionários. Estes encontravam-se então casualmente na direção da minoria sindicalista (da central sindical reformista da França) e haviam composto (para a ida a Moscou) uma delegação onde as diversas tendências minoritárias estavam representadas, mas que tinha o mandato formal de opor-se a toda proposição que preconizasse a ‘ligação orgânica’.
Na ordem do dia que havíamos estabelecido para o congresso, a questão das relações entre as duas internacionais ocupava bom espaço; o informante designado era Zinoviev, e eu deveria fazer um co-informe. Embora nossas conclusões não diferissem essencialmente, iríamos abordar a questão de maneira diferente. Eu achava que se falava demais em ‘preconceitos sindicalistas’ e nem sempre com inteligência, e propunha-me lembrar que esses ‘preconceitos’ não tinham impedido os sindicalistas de se colocarem na primeira linha da resistência à guerra e da defesa da Revolução de Outubro.
Losovski submeteu-me o texto da resolução que devia constituir a conclusão desses debates penosos; ele trazia já a assinatura de todos os membros do birô, Tom Mann inclusive. Um dos parágrafos preconizava a ‘ligação orgânica’ dos partidos políticos e dos sindicatos. Era a resposta à atitude irritante dos ‘sindicalistas puros’ da delegação francesa; noutras circunstâncias eu teria certamente conseguido fazer prevalecer um texto menos rígido; o texto apresentado poderia parecer perigosa e inutilmente provocante; ele daria a Jouhaux (dirigente da central sindical francesa) e aos outros líderes reformistas uma arma que eles não deixariam de utilizar contra a minoria; isso era perfeitamente claro para mim e meus amigos; mas tudo que pude obter foi que não se fizesse da ligação orgânica uma obrigação absoluta, que somente se a recomendasse como ‘altamente desejável’.”
(A. Rosmer, Moscou sous Léníne, páginas 37-42.)

Rosmer preferia que a ligação orgânica da ISV com a Internacional comunista não fosse obrigatória porque avaliava que assim seria mais fácil trabalhar com os sindicalistas independentes principalmente na França e na Espanha. Nessa época o sindicalismo revolucionário havia-se desenvolvido fora dos partidos políticos, como meio de defesa contra o processo degenerativo dos aparelhos burocráticos em que se haviam transformado os partidos social-democratas. Tratava-se, portanto, de uma situação novas bastante diferente da situação existente nos tempos de Marx.

Do ponto de vista teórico, era possível defender a ligação orgânica dos sindicatos com a Internacional Comunista como expressão da tradicional posição marxista, favorável à ligação estreita entre sindicato e partido. Só que as mudanças surgidas nas relações entre as massas e os partidos a partir da degeneração da II Internacional, principalmente a partir de 1914, não permitiam mais que a questão continuasse sendo tratada da maneira tradicional. Exigir em1921 a ligação orgânica da ISV com a III Internacional significava ligar o desenvolvimento do movimento sindical classista de todos os países à evolução interna da Rússia soviética. E esta estava atravessando dificuldades terríveis.

As dificuldades vividas pelo povo soviético na época do “comunismo de guerra” e que em termos diferentes continuavam sob a NEP, foram bastante exploradas, não só pela burguesia, mas também pela social-democracia, que defendia o capitalismo em nome da opção pelo caminho das reformas, em oposição aos que buscavam apoiar-se na Revolução Russa para apontar o caminho da revolução. Por outro lado, a proibição de frações no Partido Comunista russo em 1921 repercutiu negativamente no movimento operário, principalmente entre os sindicalistas. E enquanto isso, na própria Rússia acentuava-se a subordinação dos sindicatos ao partido, criando-se assim uma situação contraditória para a Internacional Comunista: “ligação orgânica” em termos prudentes no plano internacional; subordinação hierárquica na Rússia soviética. Todas essas dificuldades e contradições dos revolucionários facilitaram as manobras da social-democracia (que entrementes havia criado sua própria internacional sindical, a chamada Internacional de Amsterdã), cujo objetivo era provocar um processo de ruptura com o movimento sindical classista, a fim de preservar seus aparelhos sindicais, expulsando deles os sindicalistas influenciados pela Revolução de Outubro.

Ao contrário do que às vezes tem sido afirmado, a ISV não queria a cisão das centrais sindicais. Queria tentar a conquista da maioria, nos sindicatos e centrais sindicais existentes, através da atuação organizada de frações ligadas à ISV. O que ocorreu posteriormente foi a expulsão dos ativistas ligados à ISV dos sindicatos tradicionais, por iniciativa das direções reformistas. Entretanto, não se pode deixar de levar em conta que os problemas ligados à evolução da situação na Rússia soviética e a prática ali adotada em relação aos sindicatos pelo Partido Comunista tornaram a ISV vulnerável aos ataques dos dirigentes reformistas. Foram fatos como esses que, por exemplo, permitiram à direção da CNT espanhola (central sindical anarquista que havia anteriormente decidido sua própria adesão à III Internacional) impor facilmente a ruptura dos laços com a ISV na Conferência de Saragoça, em 1922.

Portanto, a ligação orgânica da ISV com a III Internacional, embora aparentemente baseada num princípio marxista, tornara-se em 1921 contraditória com a luta pela unidade do movimento sindical classista. A contradição surgia e crescia juntamente com o desenvolvimento gradativo do comportamento autoritário do Partido Comunista russo, tanto em relação aos sindicatos na própria Rússia, quanto em relação aos demais partidos da III Internacional. Sem dúvida essa contradição teria sido superada se tivesse havido continuidade no processo de construção do socialismo na Rússia, em ligação com a expansão da revolução proletária para outros países. Isso não ocorreu, porém. E, enquanto isso não ocorresse, uma proposta de separação orgânica dos sindicatos em relação a todos os partidos seria provavelmente mais eficaz para enfraquecer os laços do movimento sindical com as direções reformistas encasteladas na Internacional de Amsterdã.

V

Trotsky no México, pouco depois de ter conseguido asilo político, em 1938
Trotsky no México, pouco depois de conseguir asilo político, em 1938.

Durante os anos 1920 deu-se no movimento operário um desenvolvimento das tendências contrárias à autonomia sindical. Isso não apenas devido à evolução interna da Rússia soviética e suas repercussões na III Internacional. Também a campanha da social-democracia contra a Revolução de Outubro não ajudava a diminuir o controle dos partidos sobre os sindicatos; pelo contrário, reforçava-o, através do acirramento da oposição entre os partidos social-democratas e comunistas.

O próprio desenvolvimento da luta de classes, que se tornara extremamente aguda a partir da Revolução de Outubro, era um fator poderoso a acentuar o papel dos partidos no movimento operário.

Essa tendência dominante ofuscou bastante a discussão sobre as relações entre sindicato e partido, na época. É nesse contexto que Trotsky, em sua luta contra a stalinização dos partidos comunistas, apresenta suas teses sobre a questão sindical no artigo “Comunismo e Sindicalismo”, escrito em outubro de 1929, logo após sua deportação da URSS, Na tese 13 do artigo, Trotsky faz uma afirmação particularmente importante ao abordar a relação entre sindicato e partido em função do desenvolvimento da luta de classes:

“Está claro que a influência geral do Partido Comunista crescerá, inclusive nos sindicatos, quanto mais revolucionária se torne a situação.
Essas condições permitem uma apreciação do grau e da forma da verdadeira autonomia, real e não metafísica, dos sindicatos. Em tempos de ‘paz’, quando as formas mais militantes de ação sindical consistem em greves econômicas isoladas, o papel direto do partido na ação sindical passa a um segundo plano. Geralmente o partido não toma uma decisão sobre cada greve isolada. Ajuda o sindicato a decidir sobre se a greve é oportuna, mediante sua informação econômica e política e seus conselhos. Colabora com cada greve mediante a agitação, etc. Mas o primeiro lugar na greve certamente corresponde ao sindicato.
A situação muda radicalmente quando a mobilização eleva-se à greve geral ou inclusive a uma luta direta pelo poder. Nessas condições o papel de direção do partido passa a ser direto, aberto e imediato. Os sindicatos (naturalmente os que não passam para o outro lado da barricada) convertem-se em aparelhos organizativos do partido, que aparece, perante toda a classe, como líder da revolução e assume toda a responsabilidade. Entre a greve econômica parcial e a insurreição revolucionária há toda uma gama de possíveis relações entre o partido e os sindicatos, vários graus de influência direta e imediata, etc.
Mas, quaisquer que sejam as condições, o partido trata de ganhar influência, contando com a autonomia dos sindicatos, os quais, (cabe repetir), não estão ‘submetidos’ a ele organizativamente.”

Considerando que, segundo essa tese, o partido deve continuar “contando com a autonomia dos sindicatos”, “quaisquer que sejam as condições”, pode-se interpretar a afirmação anterior de que “na luta direta pelo poder os sindicatos… convertem-se em aparelhos organizativos do partido” como significando uma forma extraordinária de colaboração do sindicato com o partido revolucionário em condições de guerra civil declarada ou latente. Sendo que, no caso de ocorrer esse tipo de colaboração extrema, Trotsky considera absurdo falar em sindicatos “submetidos” ao partido, colocando por isso a palavra entre aspas.

Se essa for a interpretação correta da tese acima, será possível considerá-la como incluída no princípio geral da estreita colaboração entre sindicato e partido, defendida, par Marx. Entretanto, a questão permanece aberta, porque, no mesmo artigo, Trotsky faz afirmações aparentemente contraditórias com a defesa da autonomia sindical “em quaisquer condições”. A tese 2 diz categoricamente: “Aqueles que, em princípio, contrapõem a autonomia sindical à direção do Partido Comunista estão contrapondo – queiram ou não – o setor proletário mais atrasado à vanguarda da classe operária; a luta pelas conquistas imediatas à luta pela completa libertação dos trabalhadores; o reformismo ao comunismo; o oportunismo ao marxismo revolucionário.”

Trotsky retoma aqui a mesma abordagem de Lenin em 1908, com a mesma nuance introduzida por este em relação à teoria e prática da AIT. Marx falava em ligação inseparável da atividade econômica e da atividade política da classe operária e entendia que os sindicatos deviam filiar-se à AIT; Lenin acrescenta (como vimos acima) que os sindicatos “devem ser dirigidos” pelo partido social-democrata. Trotsky ataca os que contrapõem o setor proletário mais atrasado (a massa pouco politizada dos sindicatos) à vanguarda (os militantes do partido), o que é correto. Mas fala como se a direção do Partido Comunista e a vanguarda da classe operária fossem coisas idênticas, isto é, a tese marxista que rejeita a oposição entre a massa do proletariado e a vanguarda é ampliada para condenar a contraposição entre o setor proletário mais atrasado e a direção do Partido Comunista. Uma afirmação incorreta fica assim embutida num princípio correto.

Há uma diferença entre a atividade dirigente dos militantes políticos nos sindicatos e o controle dos sindicatos pela direção do Partido Comunista. A autonomia sindical não deve ser contraposta à estreita e indissolúvel ligação entre sindicato classista e partido revolucionário. Ao mesmo tempo, essa ligação exige a preservação da autonomia sindical realmente “quaisquer que sejam as condições”, o que necessariamente exclui qualquer contraposição entre setor proletário mais atrasado e vanguarda. Porém, autonomia sindical e direção partidária sobre os sindicatos sim, se contrapõem.

A extrapolação do princípio marxista sobre o papel da vanguarda no movimento sindical para justificar o submetimento dos sindicatos pelo Partido Comunista tornava-se especialmente perigosa na época em que Trotsky escrevia esse artigo, quando, com a grande guinada política conhecida como “terceiro período”, a III Internacional já entrava a fundo no processo de stalinização. Nessa época Trotsky organizava a Oposição de Esquerda como fração (não reconhecida) nos partidos comunistas, atuando como tal nos sindicatos. Na luta política que ali se travava, a Oposição de Esquerda constatava quotidianamente a atividade destrutiva do stalinismo no movimento sindical, conforme Trotsky dá a entender no mesmo artigo:

“A Oposição de Esquerda afirma que é impossível influir no movimento sindical, ajudá-lo a encontrar uma orientação correta, imbuí-lo de bandeiras adequadas, se não através do Partido Comunista (ou, no momento, de uma fração) que é, além de seus outros atributos, o principal laboratório ideológico da classe operária.
Entenda-se bem: a tarefa do Partido Comunista não consiste somente em ganhar influência nos sindicatos tais como são, mas em ganhar, através dos sindicatos, influência na maioria da classe operária. Isso somente é possível se os métodos que o partido emprega nos sindicatos correspondem à natureza e tarefa destes. A luta pela influência do partido no sindicato tem sua verificação objetiva no fato de eles prosperarem ou não, se aumenta ou não o número de seus membros, como também em suas relações com as massas. Se o partido paga sua influência nos sindicatos com o preço da limitação do alcance ou do fracionamento dos sindicatos (convertendo-os em auxiliares do partido para fins momentâneos ou impedindo-os de transformar-se em autênticas organizações de massas), as relações entre o partido e a classe andam mal. Não é necessário tratarmos aqui das causas de semelhante situação. Fizemos isso mais de uma vez e o fazemos todos os dias. A inconstância da política comunista oficial reflete sua tendência aventureira a converter o partido em senhor da classe operária no menor tempo possível, por meio de malabarismos, maquinações, uma agitação superficial, etc.
Todavia, o modo de sair dessa situação não é contrapor os sindicatos ao partido (ou à fração), mas lutar implacavelmente por mudar toda a política do partido, inclusive a sindical.”

Lutar para mudar toda a política do partido fazia parte da luta interna nos partidos comunistas. Enquanto isso, porém, no movimento sindical, devia-se deixar passar a política stalinista de subordinação total dos sindicatos ao partido sem oferecer resistência?

É possível que Trotsky temesse ser acusado de anti-leninista, caso condenasse a teoria dos sindicatos como “correia de transmissão” entre a direção do partido e as massas. Trotsky depositava suas esperanças no avanço da Oposição de Esquerda, cuja vitória permitiria mais tarde resolver os demais problemas. Entretanto, os problemas não resolvidos por Lenin certamente não deixaram de pesar contra a Oposição de Esquerda.

Sem dúvida uma das mais importantes contribuições de Trotsky sobre a questão sindical é o artigo “Os sindicatos na época da decadência imperialista”, escrito em 1940, pouco antes de seu assassinato por um agente de Stalin. Nesse artigo, Trotsky analisa as novas condições surgidas com o incremento extraordinário da intervenção estatal em muitos países capitalistas e define as palavras de ordem indispensáveis para a defesa do caráter classista dos sindicatos:

“Temos que nos adaptar às condições existentes nos sindicatos de cada país para mobilizar as massas, não apenas contra a burguesia, mas também contra o regime totalitário dos próprios sindicatos e contra os dirigentes que sustentam esse regime. A primeira palavra de ordem dessa luta é: independência total e incondicional dos sindicatos em relação ao Estado capitalista. Isso significa lutar para transformar os sindicatos em organismos das grandes massas exploradas e não da aristocracia operária.
A segunda é: democracia sindical. Esta palavra de ordem deduz-se diretamente da primeira e pressupõe, para sua realização, a independência total dos sindicatos em relação ao Estado imperialista ou colonial.”

Independência e democracia interna dos sindicatos são efetivamente bases fundamentais para a defesa dos interesses de classe dos trabalhadores. É igualmente importante a observação de que a segunda palavra de ordem decorre diretamente da primeira. Pois sindicato controlado pelo Estado não pode basear-se na democracia interna. Poderá até fazê-lo por algum tempo, à custa de concessões do Estado, porém certamente não poderá fazer da democracia sua base de sustentação permanente. Na América Latina, os casos do Brasil, México e Argentina desde muitos anos têm comprovado que peleguismo (ou “charrismo”) e democracia sindical não andam juntos.

Por outro lado, Trotsky liga a viabilidade a longo prazo da independência e democracia nos sindicatos a sua orientação no sentido da revolução, conforme esclarece na continuação desse artigo de 1940:

“Noutras palavras, os sindicatos atualmente não podem ser simplesmente os órgãos da democracia, como na época do capitalismo concorrencial e já não podem ser politicamente neutros, ou seja, limitar-se a servir às necessidades quotidianas da classe operária. Já não podem ser anarquistas, quer dizer, já não podem ignorar a influência decisiva do Estado na vida dos povos e das classes. Já não podem ser reformistas, porque as condições objetivas não dão espaço a qualquer reforma séria e duradoura. Os sindicatos de nosso tempo podem ou servir como ferramentas secundárias do capitalismo imperialista para subordinar e disciplinar os operários e para impedir a revolução ou, ao contrário, transformar-se em ferramentas do movimento revolucionário do proletariado.”

O significado essencial desse parágrafo é a vinculação da luta por sindicatos independentes e democráticos à construção do partido revolucionário, num processo de luta contra o stalinismo dos partidos comunistas e o reformismo da social-democracia. No plano organizativo essa vinculação concretizou-se através da fundação da IV Internacional, em 1938. De fato, para a defesa do caráter classista dos sindicatos é indispensável a existência de uma vanguarda convencida da absoluta necessidade de manter os sindicatos sob o controle democrático da massa dos trabalhadores, em última análise, a tese da importância fundamental da independência e democracia para os sindicatos tem na proposta de construção do partido revolucionário sua conclusão lógica, a partir do fato de terem os partidos comunistas stalinizados e os partidos social-democratas deixado de ser organizações revolucionárias.

O sindicato não pode manter-se numa trajetória constante de luta pela emancipação dos trabalhadores a não ser que tal constância seja sustentada por uma vanguarda de militantes sindicais. Essa vanguarda nunca deixará de fazer uma opção partidária. E o tipo de opção partidária adotada pela vanguarda é decisivo para a trajetória dos sindicatos. Por exemplo, as centrais sindicais ligadas aos partidos tradicionais do movimento operário têm enveredado pela colaboração com o capital, quer sob a forma de política reformista, quer sob a forma de integração ao aparelho de Estado, atrelando-se a lideranças burguesas bonapartistas e demagógicas. E, paralelamente, a degradação maior ou menor da democracia interna tem feito parte da vida dessas centrais sindicais, acompanhando a evolução da luta de classes. O movimento sindical não pode permanecer politicamente neutro porque a opção política de seus militantes de vanguarda determina inevitavelmente os rumos seguidos pelos sindicatos. Por isso, Trotsky estava certo ao ligar a viabilidade da independência e democracia sindical a uma opção revolucionária, o que implica a organização da vanguarda do proletariado nessa perspectiva.

Menos certa é a formulação adotada por Trotsky ao colocar sob forma de dilema urgente a oposição entre a luta pela independência e democracia, de um lado, e a integração dos sindicatos ao sistema de dominação capitalista, de outro.

Em primeiro lugar, esse dilema é colocado em termos que decorriam dos perigos anunciados pelo avanço da arregimentação dos trabalhadores pelo Estado em muitos países, juntamente com a expansão do fascismo. Em agosto de 1940 não se podia garantir de antemão a derrota das potências fascistas na 2ª Guerra Mundial. Após a derrota militar do fascismo, entretanto, o capitalismo não teve forças para transformar completamente os sindicatos em instrumentos do capital. O dilema colocado por Trotsky apresentou-se em termos menos urgentes após a guerra.

Em segundo lugar, Trotsky não deixa claro que a inviabilidade de uma posição de neutralidade para o sindicalismo classista significa, ao mesmo tempo, a inviabilidade das práticas que conduzam à liquidação da autonomia sindical. A falta de maior esclarecimento desse ponto não deve ter deixado de pesar contra a aceitação dos argumentos de Trotsky por parte dos sindicalistas que se chocavam com a prática autoritária dos stalinistas.

Para os trabalhadores que buscavam o caminho da revolução e encontravam pela frente o stalinismo, indubitavelmente a defesa da autonomia sindical fazia parte da luta pelo respeito aos métodos democráticos no movimento operário como um todo, principalmente porque os partidos tradicionais do movimento operário se haviam transformado em aparelhos burocráticos, preocupados fundamentalmente com sua própria preservação.

Na realidade, a autonomia sindical é uma das formas em que se manifesta a democracia operária e, como tal, é um elemento indispensável do processo geral de organização do proletariado como classe. Para Marx, a defesa da democracia operária era uma questão central. E a AIT nunca deixou de criticar violentamente as práticas nocivas à democracia no movimento operário. Um bom exemplo das concepções de Marx a esse respeito está em sua carta dirigida a J. B. Schweitzer, sucessor de Lassalle na direção da União Geral dos Trabalhadores alemães:

“Como todos os que pretendem ter no bolso uma panaceia para os sofrimentos das massas, ele (Lassalle) deu de imediato a sua agitação um aspecto sectário de tipo religioso. De fato, toda seita é religiosa. Precisamente porque ele era o fundador de uma seita, ele rejeitou, além disso, toda relação natural com o movimento anterior da Alemanha ou do exterior. Ele caiu no erro de Proudhon, buscando a base de sua agitação, não nos elementos reais do movimento de classe, mas sim querendo prescrever a este sua marcha segundo uma receita doutrinal determinada.
Isso que digo aqui em retrospecto, eu havia em grande parte predito a Lassalle, quando ele veio visitar-me em Londres em 1862 e pediu-me para colocar-me junto com ele à cabeça desse novo movimento.
Você experimentou em sua própria pessoa a oposição que existe entre um movimento de seita e um movimento de classe. A seita procura sua razão de ser e seu ponto de honra, não no que há de comum no seio do movimento operário, mas sim em sua receita particular, que a distingue desse movimento. Assim, quando você propôs em Hamburgo a convocação de um congresso para fundar sindicatos, você não conseguiu quebrar a resistência dos sectários senão quando ameaçou demitir-se do posto de presidente. Além disso, você foi obrigado a dividir-se em duas partes, declarando que uma agia como chefe de seita e outra como órgão do movimento de classe.
A dissolução (pela polícia) da União Geral dos Trabalhadores Alemães forneceu-lhe a ocasião de realizar um grande progresso e declarar – e provar, se necessário – que uma nova fase se abria, que o movimento sectário estava maduro para dissolver-se no movimento de classe e para pôr fim a todo ‘personalismo’. O conteúdo da seita deveria ter sido transferido como elemento enriquecedor no movimento geral, como foi o caso de todas as seitas operárias do passado. Em vez disso, você de fato intimou o movimento de classe a subordinar-se a um movimento sectário particular. Os que não são seus amigos concluíram disso que você fazia questão de conservar ‘seu próprio movimento operário’.”
(Carta de 13.10.1968.)

Marx está se referindo a um partido, a União fundada por Lassalle em 1863. A tese que defende, entretanto, é um princípio aplicável em todos os terrenos de luta em que se desenvolve o movimento operário, Marx condena com ênfase aqui a tentativa de subordinar o movimento geral do proletariado a um movimento sectário particular. O termo “movimento sectário” não é empregado na carta em sentido pejorativo, mas sim no sentido de “movimento parcial”, representativo de uma corrente particular de pensamento; pois Marx explica na mesma carta que, após percorrer certa trajetória, o “movimento sectário” (o partido de Lassalle) estava maduro para dissolver-se no movimento de classe. Evidentemente, Marx não quer com isso dizer que, como norma os partidos deveriam, num dado momento de sua existência, dissolver-se no movimento geral da classe. Todos os seus escritos sobre a importância do partido da classe operária e sua militância na AIT não permitem tal conclusão. A frase em questão quer dizer que os laços estabelecidos pelo partido com o conjunto da classe devem, a partir de certo grau de seu desenvolvimento, fazer dele um ponto de referência política para as massas proletárias o que lhe permite fundir-se enquanto vanguarda no movimento geral da classe. Mas é significativo que Marx fale desse processo não como sendo uma integração da classe operária no partido, mas sim como sendo uma integração do partido no movimento de classe.

As implicações desse princípio fundamental do marxismo com a questão da relação entre sindicato e partido são evidentes. O conteúdo da democracia operária (e, ligada a ela, a autonomia sindical) mostra-se com força nas entrelinhas dessa crítica de Marx aos lassalianos. A democracia operária aparece como elemento fundamental do processo de organização geral do proletariado como classe – contra a eternização dos movimentos sectários que impedem a unidade do movimento operário.

Conclusão

Greve em 1906 pela jornada de oito horas na França.
1906: Greve pela jornada de oito horas na França.

1. Ainda é válido lutar por um sindicalismo “classista”? Evidentemente, a expressão decorre da teoria marxista das classes sociais.

Discute-se hoje se a classe operária de que falava Marx ainda existe. Sem dúvida, muita coisa mudou de lá para cá: diminuiu a proporção de operários industriais entre os assalariados, mudaram as formas de organização do trabalho e muitas outras coisas.

O mais importante, porém é que o capitalismo continua vigente e a grande massa da população continua sendo constituída de assalariados.

O mundo moderno ainda se divide basicamente entre proprietários de meios de produção e ofertantes de mão de obra.

Seja como for, uma liderança sindical autêntica não se define pela aceitação ou não da teoria marxista das classes sociais. A única coisa que realmente conta é a defesa encarniçada dos interesses dos trabalhadores que representa. Em termos bem simples: que seja honesta com a base que oficialmente representa, recusando o papel de apaziguadora de conflitos e, muito menos, de disciplinadora dos trabalhadores em proveito da lucratividade do capital. Sindicato é para defender a lucratividade do trabalho. Ponto. Isso já é marxismo mais do que suficiente.

Uma mudança importante do mundo de hoje está nas formas de organização empresarial, que priorizam a valorização dos recursos humanos, a preocupação dos administradores modernos é fazer os empregados “vestirem a camisa” da empresa. Preocupação que decorre da necessidade de um alto grau de adaptabilidade dos trabalhadores à variação das atividades. As atividades repetitivas estão diminuindo em muitas empresas, devido ao desenvolvimento de máquinas “inteligentes” e das comunicações informatizadas. Logo, mão de obra polivalente e “criativa” está em alta; operadores de uma máquina só e especialistas de uma rotina só estão em baixa. E para conseguir criatividade dos funcionários, os empresários precisam hoje de um ambiente de trabalho mais distendido e mais participativo do que o dos tempos antigos.

Em princípio, nada contra. Não é inerente ao método marxista considerar os capitalistas como inimigos pessoais de cada trabalhador. Nem o trabalhador marxista precisa ser um sabotador. O antagonismo entre as classes, em termos gerais, não necessariamente impede um ambiente de paz nos locais de trabalho. A guerra nos locais de trabalho sempre começou com a pressão pela maximização do lucro. Quando não pressionados, os trabalhadores sempre desenvolveram atitudes espontâneas de colaboração, porque o homem é um animal social e tende ao convívio solidário.

Marx não concebia a hostilidade entre as classes como resultado de uma suposta “condição operária”, que tem preocupado certas correntes sociológicas sem compromisso com o método marxista. Em geral os trabalhadores acham sua condição social perfeitamente normal; e querem mesmo é levar sua vidinha em paz. Quando isso se torna difícil é que vem o conflito, e com ele a hostilidade entre as classes.

O marxismo pode até aguçar o conflito entre as classes ao organizar os trabalhadores em defesa de sua vidinha normal. Mas não partir de uma oposição de ideias para atrapalhar a vidinha normal e com isso criar o conflito. Marx via a luta de classes como um conflito de interesses materiais opostos; não como um confronto entre uma suposta “concepção proletária do mundo” e a ideologia burguesa. Assim, se os atuais avanços tecnológicos permitirem melhor relacionamento dentro das empresas, os marxistas não precisarão adoecer de desgosto por isso. Todos podem ficar felizes, marxistas inclusive, enquanto o bom relacionamento não significar trabalho gratuito além do horário ou aumento da produtividade sem efeito na remuneração do trabalho.

Os fatos recentes, entretanto, têm mostrado que as inovações nos métodos administrativos se dão no contexto de uma evolução econômica global que diminui o número de beneficiados com as inovações e ameaça conquistas sociais anteriores. As empresas querem pagar salários mais variáveis e contribuições sociais menores. O Estado de bem-estar conquistado em países centrais após a 2ª Guerra Mundial está sendo contestado (aliás, já sendo corroído). Os economistas bem pagos para demonstrar a racionalidade das decisões dos capitalistas explicam em coro (hoje em dia praticamente sem vozes discordantes) que o Estado de bem-estar está falido e que muitas das conquistas sociais anteriores são insustentáveis face ao nível atual da competição internacional.

Não fossem os efeitos desmoralizantes do “socialismo real” desmoronado, os trabalhadores estariam talvez melhor lembrados de que foi sempre em nome da competição que os capitalistas tentaram empurrar o nível de vida dos assalariados para baixo. Desde que existe capitalismo. Estariam também lembrados de que produção competitiva ocorreu no passado combinada com níveis de vida muito variados. E que não há teoria científica que defina uma relação necessária entre produção, competitiva e nível de vida. Isso é sempre uma questão de escolhas políticas e de relação de força entre as classes.

Quando o capitalismo não consegue mais produzir sem baixar o nível de vida geral é hora de mudar o funcionamento do sistema, não o nível de vida. Quer dizer: é preciso defender primeiro o homem, depois o capital. Qualquer sindicalismo viável (marxista, classista ou simplesmente bom) não pode renunciar a essa ordem de prioridades.

2. Uma vez definido que os sindicatos necessitam manter suas reivindicações numa perspectiva que vá além da lógica capitalista, torna-se óbvio que a completa independência em relação ao Estado capitalista e aos patrões deve ser um princípio fundamental do sindicalismo.

É esse princípio que define a relação entre sindicatos e partidos políticos. Se os sindicatos não podem enquadrar suas reivindicações nos limites estabelecidos pela lógica capitalista, fica automaticamente criada uma necessidade de diferenciar os partidos que defendem o capitalismo até o fim dos partidos que nasceram lutando contra os capitalistas. Sindicatos totalmente coerentes com os interesses dos trabalhadores não podem aliar-se a partidos representativos de interesses capitalistas. Mas podem, eventualmente até devem, aliar-se e ligar-se estreitamente a partidos surgidos das lutas dos trabalhadores. Nisso os assalariados não precisam ser diferentes dos patrões, cujas instituições corporativas estão estreitamente ligadas aos partidos que defendem seus interesses.

Em relação aos partidos surgidos do movimento operário (não necessariamente autoproclamados “marxistas” ou “socialistas”), os sindicatos devem manter-se autônomos. “Neutralidade” ou separação estanque seria absurdo, pelo simples fato de que os ativistas sindicais são inevitavelmente filiados ou simpatizantes de partidos do movimento operário. Os sindicatos não podem, sem prejuízo próprio, dar aos ativistas sindicais o mesmo tratamento que devem dar aos políticos de partidos ligados a interesses patronais.

Autonomia sindical significa basicamente o seguinte: nenhuma decisão sindical deve ser tomada fora dos organismos sindicais. Não aceitar a tese de que sindicatos seriam “correias de transmissão” entre os partidos do movimento operário (que supostamente organizariam uma “vanguarda” ) e as “massas”.

Essa tese implica a ideia de que pessoas particularmente “conscientes” conhecem os interesses dos trabalhadores comuns melhor do que estes. Marx dizia que os comunistas se diferenciavam dos demais trabalhadores por ligar-se sempre aos interesses mais gerais de sua classe, e não aos interesses particulares ou nacionais (Manifesto do Partido Comunista). Mas isso não quer dizer que os marxistas (ou “comunistas”, como Marx dizia) “sabem” melhor do que os próprios trabalhadores quais são seus interesses gerais. Menos ainda que o partido marxista teria a “missão” de decidir em lugar e em nome dos trabalhadores, mesmo contra sua vontade majoritária.

3. A conclusão de que a democracia interna é vital para os sindicatos é uma decorrência inevitável de sua própria natureza de organizações para todos e necessariamente representativa de todos os assalariados. Isso no caso do sindicalismo ligado aos interesses de todos os assalariados.

Quando os capitalistas não podem impedir a organização dos trabalhadores, tentam criar organizações sindicais burocráticas ou burocratizar as já existentes. Porque sindicatos livremente organizados pelos próprios trabalhadores sempre são perigosos para o capitalismo. Mesmo que não tenham uma proposta globalmente anticapitalista, são perigosos simplesmente por representarem a vontade autêntica dos trabalhadores.

Vontade autêntica só é visível em organizações onde reina plena democracia interna. Logo, a luta pelo máximo de democracia interna pode ser simplesmente entendida como a busca do máximo de eficiência como sindicato.

Entretanto, manter a democracia interna, evitando a burocratização dos sindicatos não é fácil. Porque sindicato tem que negociar com os patrões; negociar com os patrões implica algum reconhecimento legal; reconhecimento legal implica submetimento a certas normas estabelecidas pelo governo. E tais normas vão sempre no sentido de distorcer a representação dos trabalhadores ou de garantir a continuidade das direções mais acomodadas. Além disso, sindicatos legais tendem a acumular um grande patrimônio (principalmente onde há contribuição sindical compulsória). E, com o tempo, o apego ao patrimônio do sindicato tende a prevalecer sobre o apego à representatividade autêntica.

Um modo usual de deformar a representação sindical é tornar obrigatória a chamada “unicidade sindical”. Leis que impõem um único sindicato por categoria e área geográfica, acompanhadas de contribuição sindical compulsória, são poderosos meios de burocratização dos sindicatos. Lutar contra isso é um imperativo absoluto.

Os trabalhadores devem ter liberdade para forjar a união de todos os empregados de um mesmo patrão (ou do mesmo oligopólio), o que pode não coincidir com uma única área geográfica e mesmo abranger mais de uma categoria. Pois a união mais eficaz é sempre a união livre de todos que trabalham para a mesma instituição patronal.

Em qualquer hipótese, o essencial é que os sindicatos sejam organizados de baixo para cima, com inteira liberdade, e sejam sustentados pelos próprios sindicalizados.

4. Para melhor representar e servir os trabalhadores a forma de organização sindical deve manter a direção constantemente próxima de suas bases, tornando a representação mais direta, na medida do possível.

Isso implica não só cuidados com a ligação entre direção e base sindical, como também uma luta por mais espaço de liberdade nas empresas. Os trabalhadores devem ter liberdade para organizar-se dentro das empresas, com direito a reunir-se nos locais de trabalho para eleger representantes de base.

É preciso não perder de vista que isso implica uma luta de grande envergadura. Os capitalistas não gostam de ter sindicato funcionando dentro de suas empresas; gostam menos ainda de ter organização sindical de base dando palpite sobre decisões patronais.

Para isso os patrões e seus governos tentam manter uma separação nítida entre sindicalistas profissionais e trabalhadores comuns. E geralmente tem sido bem-sucedidos nesse objetivo porque frequentemente contam com a colaboração de um sindicalismo deformado, mais interessado na representação, legal (e no patrimônio) do que na representação autêntica.

Nas condições atuais da “modernização” capitalista, sindicatos burocráticos significam sindicatos impotentes. E os atuais ataques ao Estado de bem-estar nos países centrais apoiam-se justamente na impotência dos sindicatos tradicionais, burocratizados sob a influência da social-democracia e do stalinismo.

Tudo deve ser feito para que os trabalhadores comuns se envolvam na defesa de seus próprios interesses; e não apenas que o sindicato exerça a representação legal. Essa luta poderá ser diferente de um lugar para outro, mas o princípio é o mesmo: participação da base ao máximo e representação o mais direta possível nos sindicatos.

Por isso, para lutar por maior espaço de liberdade sindical nas empresas, é necessário uma atividade política ampla, que defenda essa reivindicação junto à sociedade como uma luta pela ampliação das liberdades democráticas em geral. Sindicatos mais democráticos e mais diretamente representativos (portanto, com mais espaço nas empresas) exigem uma sociedade mais democrática. Para cumprir essa tarefa, ampla demais para os sindicatos legais, a organização do movimento operário também em partido político é indispensável.

5. Em certo sentido, não deixa de ser verdadeira a afirmação corrente de que o velho sindicalismo tornou-se obsoleto.

O velho sindicalismo consiste, grosso modo, nas duas grandes ramificações do movimento sindical “livre” (mais ou menos): a corrente dita “comunista” (mais precisamente stalinista) e a corrente social-democrata; esta última dando origem a uma variante “neutra”. A corrente anarquista, que poderia ser considerada uma terceira ramificação, deixou de ter importância fora da Espanha após a 2ª Guerra Mundial, Todas essas correntes se originaram, direta ou indiretamente, do sindicalismo surgido no tempo de Marx.

A primeira corrente tirava sua força do prestígio da URSS como país em que, supostamente, o “proletariado” estaria construindo uma nova sociedade, superior ao capitalismo. Errado ou certo, tal suposição dava aos militantes dessa corrente uma forte convicção anticapitalista, que impulsionava uma combatividade às vezes eficaz. Sempre que sua cúpula burocrática estivesse interessada em liberar a combatividade dos militantes. Uma vez a URSS desaparecida e sua antiga burocracia (ainda no poder) transformada em burguesia ultraliberal e máfias diversas, o velho sindicalismo “comunista” ficou reduzido a seu esqueleto nu: uma burocracia que tenta sobreviver. E por isso é a corrente sempre mais disposta a defender os dispositivos legais que favorecem o sindicalismo burocrático e submetido ao Estado capitalista.

A corrente sindical social-democrata (trabalhista na Grã-Bretanha e países do Commonwealth) tirava sua força das conquistas sociais importantes que arrancou dos capitalistas, respeitando o sistema. A realização do Estado de bem-estar em vários países deu-lhe autoridade e solidez. Entretanto, o Estado de bem-estar está sendo questionado pelo pensamento econômico predominante hoje. Além, disso, há as transformações tecnológicas, a terceirização e o desaparecimento ou fragmentação de categorias profissionais antes importantes no movimento sindical. Tudo isso reduziu a corrente social-democrata a um sindicalismo minoritário, entrincheirado em categorias qualificadas e mais bem organizadas, que ainda resistem. Suas convicções capitalistas levam-na a conformar-se com a restrição do bem-estar social a uma minoria; ao “possível” admitido pelos ideólogos da nova “competitividade global”. Os sindicatos norte-americanos (variante “neutra” dessa corrente) têm seguido uma trajetória semelhante, com algumas particularidades.

O resultado dessa evolução do velho sindicalismo é que as grandes massas de trabalhadores estão sem representação eficaz na atualidade. E com isso a vida dos trabalhadores vai ficando cada vez mais difícil. Principalmente devido à ação de lideranças saídas do velho sindicalismo, que hoje proclamam a necessidade de “mudanças na mentalidade e na pratica sindical”, cujo objetivo é uma reorientação rápida para o enquadramento voluntário nos limites exigidos pela “competitividade global”. Tal reorientação é muito útil para manter essa gente na carreira de líderes profissionais. Para a maioria dos trabalhadores é um beco sem saída.

Hoje, o enfraquecimento dos velhos partidos políticos do movimento operário coloca a questão da representatividade de forma muito mais crua e direta do que no passado. Não basta mais ser “socialista” para representar os trabalhadores. Precisa representar mesmo. Precisa mostrar serviço organizando um fluxo de informações corretas aos trabalhadores (para contrabalançar o triunfalismo neoliberal da mídia). Precisa manter um funcionamento profundamente democrático, que inspire confiança e atinja uma base muito mais ampla do que a atingida habitualmente pelo sindicalismo tradicional. A rigor o sindicalismo necessário na atualidade não é essencialmente diferente daquele proposto por Marx. Só que agora a questão da autenticidade e profundidade da representação adquire forte preponderância sobre os aspectos ideológicos. Ao passo que, no tempo de Marx, a opção ideológica podia ser suficiente para agrupar grandes massas de trabalhadores, apesar das deficiências na ligação entre direções e bases, hoje sindicalismo forte só pode manter-se com representatividade profunda e autêntica.

6. O desmoronamento dos “-ismos” do movimento operário coloca a luta pela defesa das conquistas dos trabalhadores em termos necessariamente práticos. Não há mais ideologia de prestígio para defender as conquistas. Mas as conquistas precisam ser defendidas. Defendidas para todos; não para um número cada vez menor.

Isso exige, por um lado, adaptar-se à desideologização do sindicalismo atual, não insistindo em prometer um “socialismo” que ninguém mais sabe o que possa vir a ser, ou “sabe” através de lembranças de um triste passado. Por outro lado, exige apresentar respostas práticas, porém amplas e fortes, próprias dos trabalhadores, que restabeleçam o vínculo entre a luta sindical e os movimentos sociais, coisa que antes era realizada pelos partidos de orientação socialista.

Bem entendido, desideologização deve implicar não só o abandono da falsa ideologia ligada ao “socialismo real”, mas também e principalmente rejeitar a ideologia da “modernidade” capitalista, que pretende associar os trabalhadores à busca da “competitividade” em detrimento das conquistas sociais para a maioria. Os defensores do capitalismo, milagrosamente revitalizados pela adesão de “socialistas” arrependidos e ex-burocratas de extração tanto política como sindical, estão tentando ocupar o vácuo ideológico em que está jogado o movimento operário com a velha ideologia da “unidade de interesses” entre trabalhadores e patrões. Não dá para aceitar.

Com ou sem socialismo, os trabalhadores não podem renunciar à apresentação de soluções próprias aos problemas econômicos que afetam toda a sociedade.

Por isso, contra o desemprego estrutural, causado pelo aumento rápido da produtividade, a solução dos trabalhadores só pode ser a recolocação da luta por uma diminuição geral da jornada de trabalho; luta que permitiu vitórias importantes no passado e deu origem a melhorias importantes no nível de civilização. Fábricas que antes tinham 30, 40 ou 50 mil operários, hoje, graças à robótica, podem apresentar o mesmo volume de produção com apenas 3 mil ou 2 mil operários. Diante dessa evolução , a resposta do capitalismo é ficar com 3 mil ou 2 mil de cada 30 mil operários e deixar o resto na “assistência ao desemprego” (quando existe). E, ainda por cima, diminuir os benefícios sociais para todos, porque a contribuição dos empregados que ainda restam se torna insuficiente para manter aposentadoria e saúde pública decentes para todos. Essa não pode ser a resposta do movimento sindical.

Quando a produtividade aumenta muito, mais do que o tamanho do mercado, não há como defender as conquistas sociais da maioria sem diminuição da jornada de trabalho. Isso pode diminuir a sacrossanta produtividade (em relação aos salários pagos); mas, em compensação, aumenta a massa de consumidores produtivos, que é o resultado mais conveniente para todos.

A produtividade atingida pela tecnologia atual já permite pensar na generalização de uma jornada de quatro horas. Como e em quanto tempo se chegará a isso é uma discussão aberta. Mas nessa discussão os trabalhadores não ficam na defensiva. E podem falar em nome dos interesses gerais da sociedade, com a autoridade que isso dá. Contra uma produtividade que amplia a marginalidade social e a barbárie, o movimento sindical pode e deve opor uma produtividade com pleno emprego e civilização.

Alguns argumentarão que, para diminuir a jornada de trabalho, seria melhor uma palavra de ordem mais elástica, como escala móvel de horas de trabalho. Infelizmente, essa palavra de ordem já foi usada e nunca funcionou. Em primeiro lugar porque é difícil impedir que o cálculo da jornada mais adequada ao emprego disponível termine sendo feito por economistas parciais e burocratas escolhidos a dedo. Em segundo lugar, porque a jornada de trabalho, por natureza, não é muito “móvel”. Quem estiver trabalhando cinco horas por dia pode não querer voltar a trabalhar sete (mesmo ganhando mais) porque já ocupou de algum modo aquelas duas horas. Não se pode tratar as pessoas como meros “soldados da produção”.

Não precisa cálculos complicados para descobrir que a produtividade, em termos gerais, teve um aumento gigantesco desde os anos 1920 (quando se adotou a jornada de oito horas na Europa). Já é tempo de exigir que a sociedade tire proveito disso em termos de tempo livremente disponível. Ainda mais quando a alternativa é um forte desemprego estrutural e uma imensa marginalidade social. Pode-se ser elástico ao máximo na discussão dos meios, modos e prazos para alcançar a jornada de quatro horas. Mas o objetivo deve ser simples e claro. E isso dá uma bandeira de caráter amplo e geral ao sindicalismo e ao movimento dos trabalhadores. Eles estão precisando.

Aqui é indispensável um alerta sobre as discussões “técnicas” que fatalmente se farão sobre o assunto. Assim que uma central sindical importante propuser diminuição geral da jornada de trabalho, cairá imediatamente uma chuva de números, produzidos por economistas e instituições de pesquisa renomados, para “provar” que a proposta é economicamente “inviável”. Não será a primeira vez.

Quando foi proposta a jornada de dez horas, no inicio do século passado, surgiram numerosos estudos eruditos “provando” que a indústria iria à bancarrota maciçamente se a ideia fosse aceita. Quando começou a luta pela jornada de oito horas, no fim do século, despencou uma avalanche de análises “científicas” em contrário, inclusive levantando o problema dos possíveis efeitos deletérios da “ociosidade” em que cairiam os trabalhadores se passassem a trabalhar “só” oito horas. A teoria econômica neoclássica, que nascia nessa época, aproveitou a discussão para demonstrar “cientificamente” que a jornada de trabalho é fruto de uma “livre” escolha do trabalhador entre mais salário ou mais lazer, logo não deveria haver lei sobre jornada de trabalho. Essa teoria continua com prestígio no pensamento econômico capitalista e continua sendo posta em prática nas categorias menos organizadas, que ainda escolhem “livremente” entre a miséria ou trabalhar 10, 12 ou mais horas por dia.

Não existe ciência neutra. Os sindicatos devem fazer seus próprios estudos; e informar corretamente suas bases e a sociedade. Mas o melhor mesmo é confiar na organização dos trabalhadores.

7. Resumindo: em vez de lamentar o descrédito atual da bandeira socialista ou adaptar-se ao capitalismo vendendo sua alma, os sindicatos precisam hoje abrir um caminho próprio, que começa pela criação de uma representatividade mais direta, erguida desde a base nas empresas. Para alcançar isso, o método de Marx ainda é útil, desde que se tome o cuidado de não cair nos velhos chavões desmoralizados pelo “socialismo real”. Manter-se colado aos trabalhadores e não inventar “interesses históricos” para eles continua sendo um bom preceito de prudência, além de condizente com o marxismo.

Outro preceito de mesmo tipo é ligar os interesses dos trabalhadores aos de toda a sociedade; e não deixar-se encurralar no corporativismo mesquinho. O que exige uma bandeira ampla, como a da jornada de quatro horas. Nessa luta pode-se desenvolver também o movimento político dos trabalhadores. Pois o debate social envolvido vai muito além dos limites sindicais.

Perdidas as bandeiras do passado, outra é preciso. A de hoje pode não prometer o paraíso, como as do passado. Mas se os trabalhadores a empunharem, talvez alguns sonhos que hoje parecem impossíveis voltem a viver.


Este artigo de Vito Letizia foi concluído em julho de 2004.

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